Sócha do miradouro da Beirã - Foto José Coelho
Um
amigo que nunca vi, mas de quem gosto pese embora seja às vezes mais agreste do
que a conta. Há quem chame de sinistro ao seu uivo quando zangado,
mas nunca me meteu medo. Nos serões à lareira ouvi-lo rugir na chaminé da nossa
casa era para mim glória bendita. Indiferente à fúria com que ele embatia lá em
cima nas tijoleiras em V, o lume de lenha crepitava alegremente oferecendo o
seu calor e conforto à família instalada à sua volta. Em vez de meter-nos medo, o estrondo
da invernia fazia com que nos sentíssemos em segurança e abrigados. Hoje, a
muitas décadas de distância, rodeado de conforto e mordomias que à época não
existiam, sinto infinitas saudades de coisas tão simples como aqueles longos serões
de inverno em redor do lume onde a minha mãe preparava a ceia depois do seu dia
de trabalho árduo no campo.
À
medida que fui adquirindo outros conhecimentos tive em simultâneo que aprender a
lidar com o meu invisível amigo de modo a não me deixar por ele vencer. Coisas
tão básicas como acender um lume ao relento para me aquecer em dias ventosos, húmidos
e frios, sem ter que gastar a caixa de fósforos inteira. E também fazer lume no
pico do verão no meio do restolho seco para cozer o almoço sem atear
fogo à tapada toda era outra aventura repleta de cuidados e truques. Apesar
de os camponeses cozinharem sempre em lume de chão as suas refeições, fosse
onde fosse, ou em que época do ano fosse, os cuidados eram tão eficientes que
nunca havia fogos assassinos de pessoas ou do ambiente como há agora.
A
vida ensinou-me ainda alguns segredos que o vento até hoje não
descobriu, nomeadamente, como consegue derrubar quase tudo na sua fúria, menos uma sócha? Ah pois! Destelha por completo telhados, coberturas
inteiras de armazéns, barracas e barracões, mas as sóchas ele nunca consegue
destapar. Deixa-as sempre de pé exatamente como as encontra. Seja qual for a
sua força. A forma cónica daquelas aparentemente frágeis coberturas não permite
que ele lhes pegue, ou as derrube. Não há frinchas ou fraquezas por onde entrar
ou agarrar. Limita-se por isso a seguir o seu caminho depois de se enrolar
inutilmente em redor do erecto cone vegetal tão sabiamente inventado para quebrar
a sua impetuosidade e resistir-lhe.
Tive
a sorte e o privilégio de os meus avós e tios maternos serem quase todos
guardadores de rebanhos. E todos eles viviam parte do ano em sóchas e sôchos
onde eu dormi sempre quando os fui visitar. Já agora, porque muita gente não
saberá qual a diferença entre ambos, explicarei que a sócha é uma construção
circular fixa com vários tamanhos de raio, com uma parede em pedra seca de mais
ou menos metro e meio de altura e uma
porta de madeira sobre a qual é disposta em cone uma armação de paus compridos,
direitos e pouco grossos, afastados
entre si vinte ou trinta centímetros, solidamente amarrados uns aos outros desde
a base até ao bico da estrutura para serem depois cobertos por camadas
sobrepostas de giestas verdes, as quais, à medida que vão secando se vão
transformando numa compacta e impermeável cobertura. Quentes no inverno e
frescas no verão, de um dos lados do círculo interior ficava normalmente a zona
de estar e comer, ao centro e bem por baixo do topo do cone um quadrado no chão
feito de quatro lajes para o lume, do outro lado do círculo interior ficava a zona
de dormir quase sempre sobre tarimbas forradas de restolho macio, por baixo das
quais se guardava a roupa.
Capaz
de afrontar também qualquer temporal, o sôcho era um primo-irmão da sócha embora
muito mais pequeno. E desmontável para poder mudar de sítio sempre que se
tornava necessário. Todo feito em giesta ou palha de centeio dispostos também
em camadas sobre uma armação côncava de varas verdes de vime (ou outra madeira
flexível) previamente entrelaçadas e fixadas, era composto por quatro peças amovíveis.
O lado côncavo direito, o lado côncavo esquerdo, o centro posterior em semi-arco
para unir os dois lados côncavos direito e esquerdo, e, finalmente, o centro frontal
amovível que fechava o espaço e simultaneamente fazia de porta para utilização
diária. Era montado num alto e nas cercanias do bardo onde o gado pernoitava durante
grande parte do ano. Cada vez que o rebanho mudava de um para o outro extremo
da herdade o sôcho era desmontado para voltar a ser montado no novo local de
pastoreio e pernoita.
Mas já vai longa por hoje a prosa. Voltemos por isso e para concluir ao meu fiel e invisível amigo. Em dias menos
bons da minha vida e foram muitos, o sussurro que as folhas fazem ao tocar-se nos ramos das árvores agitadas por ele quando é calmo, sossegou quantas vezes as minhas
inquietações! E não conheço nada mais repousante do que deitar-me de costas sobre
a erva dos campos a observar as brancas nuvens de algodão na sua viagem pelo
azul do céu guiadas por ele. Porque é seguramente a minha mais velha e fiel companhia, respeitamo-nos um ao outro. Quando vejo que vem zangado viro-lhe as costas e abrigo-me. Se pelo contrário vem tranquilo na tal forma de brisa, gosto de o sentir
no rosto como que a sussurrar-me ao ouvido audíveis timbres
musicais que parecem conter a voz de pessoas queridas que deixei de ouvir há
muito...
José
Coelho
08jul19