segunda-feira, 15 de julho de 2019

Lar, doce lar...

Foto - Pedro Coelho

Gosto da minha casa. Mal o dia começa a clarear por volta das cinco e meia, imediatamente ilumina todas as divisões. Estrategicamente concebida pelo senhor meu pai com a frontaria voltada a poente e a traseira a nascente, ficaram por isso as sólidas empenas voltadas uma a norte e a outra a sul para melhor resguardo dos frios de neve ou dos ventos suões. Mais tarde quando a comprei e ampliei, fiz questão de aproveitar ao máximo a luminosidade do dia e planeei amplas janelas que a inundam de luz de ponta a ponta.

Assim, desde que nasce o sol até que o lusco-fusco o apaga, apesar das robustas venezianas, todo este meu reino de harmonia e paz é abençoado pela sua luz bendita, fonte de toda a vida. Nem as persianas internas das enormes vidraças nem os seus cortinados conseguem impedi-lo de entrar. Pelo contrário, a função de todo o conjunto é criar um agradável ambiente de semi-obscuridade, de uma frescura e aconchego inigualaveis. Cada pormenor da pequena casa original foi imaginado e concebido pelo meu pai. Cada pormenor deste casarão em que eu a transformei na sua inevitável ampliação, foi imaginado por mim.

Eis porque lhe assenta tão bem o seu nome próprio inventado por mim em honra do meu Pai e aprovado pelos meus filhos seus legítimos herdeiros. Nada na minha vida foi alguma vez por acaso. Nada. Tudo teve sempre um motivo, uma razão, uma causa, um sentido. É verdade que ficar com esta casa não foi ideia minha. Quando o meu pai se apercebeu que eu andava já em vias de negócio com outra aqui na aldeia, chamou-me à parte para me dizer:

- Mas que andas tu a fazer?

- Ando a ver de casa para comprar! Respondi-lhe.

- A tua casa é esta. Sentenciou peremptório. E prosseguiu.

- O teu cunhado – um deles – já se mostrou interessado em ficar com ela, mas eu disse-lhe logo que não, porque quero que a casa seja para ti.
Fui completamente apanhado de surpresa. Nunca havíamos falado tal coisa e muito menos imaginava que já haveria um candidato à aquisição dos bens porque era suposto os seus e meus queridos proprietários ainda terem muita vida para viver. Jamais fora equacionada sequer tal hipótese. Ainda assim, contestei:

- Pai fico agradecido pela sua vontade mas não posso ficar à espera que o Pai e a Mãe nos deixem para comprar uma casa. Moro actualmente numa do Estado à qual tenho direito pelas funções que desempenho. Mas no dia em que deixar de exercer essas funções dão-me trinta dias para sair. E quando esse dia chegar quero ter já a MINHA casa para nos acolher. A mim, à minha mulher e aos meus filhos. E por isso ando à procura.

Entendeu o meu Pai perfeitamente as minhas razões. Mas não desarmou da sua ideia e no mesmo momento decidiu o que iria imediatamente fazer. E fez. Convocou um jantar de família com os quatro filhos, os três genros, a nora e todos os netos, para literalmente “determinar” o que queria fazer. Vender a casa ao filho pelo – na altura era bastante – valor de 600. 000$00 – seiscentos contos. Eu teria que pagar a cada irmã a quantia de 150. 000$00 – cento e cinquenta contos – ficando, obviamente, com a minha parte. Para ele Pai e para a nossa Mãe, só punha uma condição. Morarem connosco enquanto vivessem. Todas essas condições foram apenas verbais. Na nossa família desde os mais remotos antepassados valeu sempre mais a palavra dada do que qualquer escritura de notário. Assim se disse, assim se cumpriu.

Nenhuma das minhas irmãs e cunhados se opôs às decisões e condições do querido e respeitado patriarca e em poucas semanas foram marcados os actos oficias necessários à compra venda e mudança de proprietário. E foi assim que, sem nunca sequer ter imaginado tal coisa, me tornei no novo dono das paredes que assistiram ao meu nascimento e das minhas duas irmãs Maria da Luz e Joaquina Maria – porque a Adelina já tinha nascido quando a casa ficou pronta – assim como foi também entre as mesmas que o pai do meu pai o Avô Faustino Coelho, ele próprio meu querido Pai, e também a mãe da minha mãe, a Avó Amélia, partiram para a sua última viagem.

Aqui se mantêm por isso guardadas as minhas mais queridas memórias pois tive o cuidado de não tocar em uma só pedra das divisões originais da casa quando se procedeu à sua ampliação. Aqui se escreveu grande parte da minha vida e dos meus entes queridos. Se dependesse de mim, aqui gostava de terminar algum dia o percurso que iniciei na fria madrugada de um já longínquo março. Mas isso é de todo imprevisível nos tempos que correm. Com um bocadinho de sorte talvez não termine sozinho numa maca nos corredores do serviço de urgência do hospital de Portalegre e tenha a sorte de, pelo menos, terminar este meu percurso noutra madrugada de outro frio março ou abril, no conforto de uma cama da Santa Casa da Misericórdia de Marvão…

José Coelho
15jul’19