domingo, 28 de julho de 2019

IN MEMORIAM...

07.10.1926  //  28.07.2014


A Avó Florinda Lourenço

Nasceu no dia 7 de outubro de 1926 num lugar a que chamam" O Muro" algures nas margens do ribeiro da Sapateira já não muito longe da sua foz a nordeste da então freguesia de Santo António das Areias. Contudo e por força da criação da freguesia da Beirã em 24 de junho de 1944, o território geográfico de abrangência da mesma foi desanexado ao de Santo António das Areias pelo que o Muro pertence desde essa data à Beirã.

O pai – o meu avô e grande amigo – de seu nome José Lourenço mas mais conhecido por Zé Cabreiro por ser guardador de rebanhos na Herdade do Matinho que ficava muito próxima do lugar onde morava numa pequena casita que ainda hoje lá existe e na qual nasceram os seus oito filhos.

A mãe – minha avó, confidente e amiga – aquela santa velhinha que ela acolheu em nossa casa e de quem cuidou amorosamente durante os nove anos em que a nossa querida anciã esteve acamada e dela totalmente dependente até ao dia em que faleceu, chamava-se Amélia da Conceição, a qual, entre os nascimentos dos oito filhos que teve, era jornaleira na monda, na sacha ou na rega das searas e das várzeas pertencentes à herdade.

Teve 8 irmãos a Avó Florinda. Ela era a mais velha, seguida pelo Francisco, depois o Joaquim, o Raimundo, a Jacinta, a Maria Francisca, a Júlia e um outro, o mais novo, do qual não sei o nome, porque não sobreviveu. Por ser a primogénita coube à avó Florinda logo a partir dos seus tenros 7 ou 8 anitos ter de cuidar dos irmãos mais novos em casa enquanto o pai e a mãe trabalhavam de manhã à noite para o sustento de todos.

Nesse tempo a família era muita mas o dinheiro pouco e o ordenado do avô Zé Lourenço era, em grande parte, pago em géneros. Chamava-se a esse pagamento mensal de "comedias" e era composto por certa medida em litros de azeite, de centeio, de feijão e grão, alguns queijos e ainda uma “peara” de gado que consistia no direito de pertença e respectiva produção de leite assim como das crias de oito cabeças adultas do rebanho que guardava, para além da mensalidade em dinheiro ajustada ano a ano, mais propriamente de S. Pedro a S. Pedro.

Para fazer o pão, tinha a avó Florinda que, uma vez por um mês, levar à cabeça o taleigo do centeio em grão e caminhar os cerca de cinco quilómetros que separavam o sítio do Muro do moinho do ti Domingos situado na várzea da Herdade dos Pombais no rio Sever para moer o grão mediante o pagamento de uma "maquia" e regressar a casa já com a farinha centeia de novo à cabeça para depois amassar tender e cozer no forno a lenha o pão da semana para toda a família.

Já agora vou explicar também o que era a tal "maquia” muito utilizada como pagamento de certos serviços, em virtude de quase ninguém poder pagar de outra forma. No caso do moleiro e dono do moinho, o ti Domingos tirava para si uma certa quantidade do grão que tinha que moer. Por exemplo, para moer 20 kg de centeio, tirava para si 5 kg. Só os restantes 15 kg iam para a mó para transformar em farinha. Dependendo da qualidade do grão, a "maquia" era maior ou menor. Se, por exemplo, o grão a moer fosse trigo, por ser mais valioso, a maquia era mais pequena. E em vez de 5 ou 6 por cada 20 kg, seria de apenas 3 ou 4.

Não foi ainda há muitos anos que essa forma de pagamento deixou de ser utilizada. Estou a lembrar-me por exemplo que, nos anos em que eu colhia azeitona para o azeite do consumo da nossa casa, a mesma ia depois ser moída nos lagares da região onde o pagamento era feito exactamente por essa "maquia". Imaginando que a nossa azeitona produzia 100 litros de azeite, só trazíamos 80 para casa. Os outros 20 eram pertença do lagar como forma de "pagamento" pela moagem da azeitona.

Feita esta explicação que me pareceu oportuna para melhor entendimento da minha narrativa e porque é bom recordar esses usos e costumes antigos, voltemos à avó Florinda depois de ela estar em casa com o saco da farinha centeia já arrumado na arca do pão. O seu cuidar dos irmãos mais novos não se resumia só a olhar por eles, vesti-los, limpá-los e dar-lhes de comer. Se um deles adoecia lá tinha que ir a magricela Florinda a pé com o irmão/irmã doentinhos escarrapachados na anca a caminho de Santo António das Areias que distava uns bons 9 ou 10 quilómetros do Muro para o ir “amostrar” ao médico. Já agora aproveito para explicar que quando se estava doente por aqui antigamente não se dizia “vou ao médico a uma consulta” mas apenas “vou-me amostrar” e toda a gente entendia que aquele “amostrar” era ir ao médico por se estar doente.

Por tudo quanto dela sei a vossa avó foi toda a sua vida e desde muito menina, uma quase-tudo-em-um. Irmã-mãe de todos os seus irmãos, assim como mais tarde foi também avó-mãe de quase todos os netos a começar logo pelo seu adorado Manel, seguindo-se a Cristina, o Luís, a Carmem e a Ana. O João Manuel e o Pedro, por terem nascido longe dela, foram os menos "apaparicados" mas nem por isso ela os amava com menor intensidade. 

Acolheu também sempre em sua casa os irmãos, quando estes decidiam “juntar-se” com as namoradas e foi como que a segunda mãe das suas cunhadas que muito a estimaram por isso toda a sua vida.

Tão bondosa criatura só não teve mesmo tempo para ser menina. Mal chegou aos 11 anos já com os irmãos mais crescidinhos e autossuficientes, prontamente foi promovida a criada de servir no Monte do Matinho como ajudante na cozinha dos ganhões, na queijeira ou na horta, tendo que contribuir com o seu ganho para as despesas da casa paterna e continuando sempre da mesma maneira a exercer a função de braço direito da sua mãe.

Aos 19 anos conheceu o avô António 16 anos mais velho que ela mas isso não a impediu de gostar tanto dele que um ano depois fugiram os dois para o Vale do Cano onde ele tinha uma várzea de pimentões. Nesse dia se constituiu mais uma família, da qual nós somos a continuação. E ocorre-me, para encerrar este capítulo, uma ternurenta resposta que ela me deu numa conversa que tivemos os dois à porta da igreja quando saíamos da missa. 

Ela ia muito cuidada, como sempre. Mas nesse domingo, além do fato domingueiro, levava um colar de pequenas pérolas negras em volta do pescoço. Achei-a tão bonita que lhe sussurrei ao ouvido: 
- Florindinha! Té lé hein? Se o nosso António Coelho aqui estivesse hoje e te visse…
Resposta pronta de quem estava viúva havia já 15 anos:
 -  Se o António Coelho aqui estivesse hoje filho, era com ele que eu me casava outra vez…

Deste diálogo há uma testemunha que vai com certeza ler o que escrevi e é capaz de se lembrar da cena. Foi a nossa muito estimada vizinha Alzira Sobreiro que se encontrava perto de nós e ao ouvir a pronta resposta da avó, exclamou com genuína admiração:
- É assim mesmo vizinha Florinda. Vocemecê é cá das minhas. Ora dê cá um grande beijinho…
E beijaram-se efectivamente as duas, na mais perfeita harmonia e sincera amizade.

José Coelho in Histórias do Cota

PS.
A este texto que foi escrito há já alguns anos quando ainda tinha o privilégio de a ter comigo, falta agora acrescentar que a nossa querida heroína faleceu às três da tarde do dia 28.07.2014 faz hoje precisamente cinco anos. E acompanhá-mo-la à sua última morada para junto do seu António no dia seguinte 29.07.2014. Que descansem em paz, juntos para todo o sempre.