Foto - Maria Coelho
Sentados os dois na varanda do primeiro andar numa manhã de meados de primavera. Eu a ler um dos meus romances, ela com o inseparável Bolinhas sobre o colo. Gostavam imenso um do outro. Toda a sua vida tinha sido amiga dos animais que sempre houve em nossa casa. Cães, gatos, galinhas, patos e até uma cabrinha que morreu afogada pela corda onde ficara presa na horta enquanto o meu pai veio almoçar e cuja morte causou tal desgosto que nunca na minha vida o vi chorar como nesse dia.
Também o inteligente caniche Bolinhas
parecia perceber que a sua amiga velhinha era cega e necessitava ser
protegida. Cada vez que uma vizinha ou amiga vinha visitá-la, assim que se aproximava dela para lhe dar um beijinho, o Bolinhas rosnava um aviso como
que a dizer-lhe “não te aproximes mais”. E quando elas se abraçavam nas suas
efusivas e amigas saudações ele desatava a ladrar zangado apesar de eu tentar acalmar a situação dizendo-lhe: - Não faz mal, Bolinhas, é amiga!
Nesse ano a quaresma fora tardia e
a Páscoa quase por finais de abril. Toda a natureza brotava pelas redondezas
emanando odores balsâmicos. As giestas em flor, as laranjeiras e limoeiros do
laranjal em frente da nossa casa, as flores dos canteiros do quintal, a
trepadeira e vasos floridos da varanda em nosso redor. Uma suave brisa fazia
balançar os cachos em acelerado crescimento na latada e ao longe ouviram-se as badaladas do sino a dar as onze horas.
- Que dia é hoje,
filho? Perguntou-me.
Estávamos no final da quaresma desse ano. Tomei nota disso porque escrevi e
guardei-o para nunca mais esquecer o que ela me contou e eu escutei nesse dia com a maior
atenção.
Começou assim:
- A gente dantes não ia à missa e não era por falta de fé mas porque o domingo era o único dia de descanso semanal. As mulheres tínham que aproveitar para lavar e remendar a
roupa, fazer limpeza e dar uma arrumadela nas casas, enquanto os homens
tinham que ir tratar das hortas para preparar as sementeiras das hortaliças que metíamos na panela toda a semana para alimentar a família. Mas nem por isso deixávamos de
ser devotos.
Parou um bocadinho absorta nas
suas memórias e continuou:
- Quando andávamos a mondar, no Matinho, depois do almoço todos os dias enquanto durava a quaresma tínhamos
que cantar as “Encelências”. Antes de começarmos, a primeira coisa que se fazía era benzermo-nos como se estivéssemos numa igreja. Depois do sinal da cruz toda a gente ficava calada. E começava a cantar a mondadeira de um dos extremos
do rancho:
1 – Ó Avé Maria, cheia de Acções de Graças
Senhor é convosco, Bendita Sois Vós
E respondia a mondadeira do outro extremo:
2 – Entre as mulheres,
bendito é o fruto
De o Vosso ventre, que nasceu Jesus
Prosseguiam depois, à vez, de um e do outro extremo:
3 – Mas Santa Maria, Santa Mãe de Deus
Rogai Deus por nós, Mãe dos pecadores
4 – Agora e na hora, de a nossa morte
Ó amén Jesus, Maria, José
5 – Maria , José, lindo nome é
Salvai a minh’alma, que ela vossa é
6 – Que ela vossa é, sempre o há-de ser
A Virgem Maria, nos há-de valer
7 – Nos há-de valer, com todo o valor
Rainha dos Anjos, com seu resplendor
Esta
sequência de sete versos era cantada
doze vezes seguidas e era um grande pecado se fosse interrompida.
Terminada a repetição do sétimo verso pela décima segunda vez, dava-se ínicio
a outra sequência das “Encelências” composta só de quatro versos repetidos seis
vezes que se chamava:
“A OFERECER”
1 – Uma Encelência que eu tenho rezado
Também a ofereço, a Jesus louvado
2 – Duas Encelências que a Virgem tivesse
Senhora da Graça, que graça nos deste
3 – Ó almas benditas lá no Purgatório
Que estão esperando por este editório
4 – Ó almas benditas que lá estão esperando
Pelas Encelências que estamos rezando
Enquanto
durava o cantar e devia ser quase toda a tarde pois feitas as contas,
doze vezes sete versos, mais seis vezes quatro versos, dá a soma de – 108 – cento
e oito, o sossego era tão grande que só se ouvia a voz da mondadeira que cantava e o barulho dos sachos a abrirem a terra. Parecia até que os pássaros se calavam também...
Tão enleado fiquei na sua narrativa que quase tive a sensação de estar “a ver” as
mondadeiras em linha no meio do trigo e “a ouvir” o som dos sachos que me é tão familiar pelas minhas sachadelas pelo quintal. O Grupo de Cantares da Beirã
que fundei em 1994 e se extinguiu por falta de “quorun” – uns faleceram,
outros foram embora para outras paragens quando a estação fechou – ainda cantou estas “Encelências” que
encantavam os nossos ouvintes mais idosos porque naturalmente lhes fazíamos recordar
a sua idade de ouro. Conheço muito bem a nossa fala raiana e sei que "Encelências" quer com toda a certeza dizer "Excelências" ou o modo como a gente simples destas terras trata as pessoas importantes.
Como Jesus, Maria e José, por exemplo!
Obrigado Mãe Florinda pelo muito que me ensinaste. Aqui transcrevo um pouquinho hoje e publico em tua memória.
José
Coelho
12jul’19