Foto - Pedro Coelho
(...)
Não
tem sido fácil esquecer o sofrimento por que te vi passar nos últimos meses da
tua vida, Mãe. Tenho no entanto plena consciência que tudo quanto humanamente
esteve ao meu alcance e me foi possível fazer, fiz, para tentar ajudar-te e
minimizar o teu desconforto. Sofri contigo cada segundo como nem imaginas. Doía-me
profundamente assistir impotente à tua agonia dolorosa, lenta e irreversível, mas o teu coração tinha tanto de doce como de resistente e não se rendeu
facilmente como tu também nunca te rendeste às tempestades e rudezas da vida. Que não foram poucas.
A
ti devo tudo o que sou, Mãe. Na humildade do teu analfabetismo eras melhor
professora do que muita gente licenciada que conheço. Os livros de onde nos
ensinavas eram os exemplos diários e permanentes que nos transmitias repletos de conteúdo em vez de letras. Dona e senhora de enormes virtudes, o asseio e a arrumação
eram a tua mais forte característica. Foste sempre de um brio excepcional como
dona de casa, esposa e mãe. Trabalhaste continuamente durante toda a tua vida
ajudando tudo e todos, e foste, inequivocamente, o pilar fundamental da nossa
família. Eras também promotora e praticante da mais absoluta honradez e
seriedade. Mereceste sempre, por tudo isso, a amizade o respeito e o carinho de
toda a gente que te conheceu.
Todos
os dias me lembro de ti, Mãe. E sinto tanto a tua falta. A minha vida nunca
mais foi a mesma desde o dia 28 de julho de 2014. Não por ter sido surpresa
pois era um fim anunciado há tempo suficiente para estarmos preparados. Mas não
foi bem assim. Percebi nesse dia que nunca estamos e nunca estaremos preparados
para perder quem nos trouxe ao mundo. E se de verdade me doeu muito a partida
do meu pai e teu companheiro de quase toda a tua vida, porque me doeu
terrivelmente sim, mais verdade é que a tua partida me doeu infinitamente mais.
Ele também perdeu a mãe dele e minha avó Adelina e por isso sei que, onde quer
que esteja, o ti António Coelho me entende.
Se
antes ia regularmente ao cemitério, agora que devia ir mais, vou menos. Ainda
não consegui fazer o luto de ti por completo e fiquei demasiado perturbado as
poucas vezes que lá fui. E tu sabes que eu não sou de grandes pieguices. Mas
fui sempre muito agarrado a ti, Mãe. E tu a mim também. Amávamo-nos
infinitamente um ao outro. O momento mais angustiante da minha vida ocorreu na
casa mortuária poucas horas depois de teres partido. A família tinha ido não
sei onde fazer não sei o quê e ficámos sozinhos os dois embora a
sala estivesse repleta de gente vizinha e tua amiga que quis estar ali a acompanhar-te.
Foi nesse instante que um pranto profundo e incontível brotou finalmente da minha alma meio
estupidificada desde as três horas da tarde quando deste o teu último suspiro
agarrada à minha mão e à mão da mana Joaquina. Acho que só nesse instante me
dei finalmente conta que te tinha perdido para sempre. E desatei a chorar possuído por uma dor inexplicável durante muito tempo sem conseguir e
sem querer conseguir conter-me. Apenas me lembro de a vizinha Joaquina se ter
levantado da sua cadeira para vir confortar-me dizendo baixinho “pronto,
pronto, não chores já mais Zé Manel, a tua mãe deixou de sofrer e está agora em
paz”.
Foi
tão duro, Mãe.
Cá
em casa o teu quarto mantém-se como quando tu o habitavas. E os “santinhos” e demais
“coisinhas” que eram tuas continuam na cómoda do quarto algumas, na estante do
meu escritório outras a fazerem-me companhia. Até os rebuçados de café que me davas
continuam guardados no pequeno pote de vidro ao lado das tuas outras coisas porque
ainda não consegui deitá-los fora pese embora cinco anos depois já não se devam
poder comer. É, acho eu, uma forma de te manter ainda perto de mim.
Um
dia irei conseguir diluir um pouco mais este gigantesco sentimento de
perda. Será talvez apenas uma questão de mais algum tempo. Mas por enquanto ainda não consegui. Nada na minha vida voltou a ser como era. Até um
dia, Mãe. Voltaremos a estar juntos. E dessa vez será para sempre...
José Coelho in Carta para a minha
Mãe
09jul’19 – Republicado com alguns
acertos