sábado, 5 de agosto de 2023

Testemunhos perenes

E no meio da terra arável da Tapada da Lagem Alta, lá continua firme o cancho onde
morava o lacrau que me ferrou num dedo do pé, no verão de 1954/55

Já mais do que uma vez pensei não voltar aos lugares mais longínquos e remotos por onde sempre andei, engendrando de mim para comigo as mais plausíveis desculpas como por exemplo o facto de estar a ficar menos ágil, de já não ter a leveza de quando era moço para subir ou descer canchos e saltar paredes, de não ser aconselhável afastar-me dos caminhos já tão raramente percorridos, porque pode dar-se a casualidade de algum inesperado trambolhão que origine a necessidade de socorro urgente, situação a que quase todos esses ermos distantes são inacessíveis. 

Talvez por isso mesmo tenham sido sempre os meus lugares de eleição. Por lá tudo quanto nos envolve é genuíno e perfeito. O melodioso despertar da natureza ao romper de cada manhã e o silêncio de cada entardecer também. A brisa leve que nos acaricia o rosto nos dias amenos ou o vento agreste a gretar-nos os beiços, em dias gélidos. Nada por ali é a fingir. Não existe fisga de cancho ou saltador de parede que eu não conheça ou não tenha saltado. Cresci e fiz-me homem a percorrer estas paisagens onde atava feixes lenha de giesta seca para a tia Florinda e também para a avó Amélia cozinharem ao lume, porque o luxo dos fogareiros a petróleo ou a gás ainda não tinha chegado.

Nestes descampados me refugiei centos de vezes em busca de tranquilidade, quando me senti inquieto. Por mil e um motivos. A dureza da vida naquele tempo, os meus primeiros amores e desamores, mas também, quantas vezes, o meu espírito indomável que nunca aceitou render-se fosse qual fosse o desafio. Há por estas paragens imensos lugares onde não chega ninguém durante semanas, meses, anos até. E quando alguém lá tem de ir, desloca-se em transportes apropriados. Tratores agrícolas ou carrinhas todo-o-terreno, onde, além de se transportar, leva ainda palhas e rações para o gado que por lá pastoreia todo o ano.

Ou vão apenas, sazonalmente, carregar alguma lenha no outono e na tiragem da cortiça dos sobreiros, ao início do verão.

A Cavalinha de Cima onde fui acolhido sempre com tanto amor e carinho pela avó Amélia e pelo avô e padrinho José Lourenço que me deu o nome, faz parte integrante da minha vida. E o Muro de que tanto ouvi falar a vida toda, por ter sido ali que nasceu e se criou a minha mãe mais os seus sete irmãos e irmãs. Tantas peripécias deles contadas nos nossos serões à lareira! O Monte do Matinho onde o avô José guardava gado e avó Amélia mondava com outras companhas e para onde foram depois também transitando para trabalharem na lavoura, à medida que iam crescendo, todos os meus tios e tias.

Quantos lugares conheço por aqui?

São quase incontáveis…

A Cabeçuda, a Herdade dos Pombais, as Amendoeiras, o Batão, o Bravo a Bola da Cera, o Cavalo, os Aires, a Pereira, a Nave, a Anta, a Murta, a Meirinha, a Retorta, o Monte Velho, o Pereiro Velho, a Malhadinha Alta, a Herdade do Pereiro com a sua Fadagosa, a Torre, o Vale do Cano, o Cabeço de Seixo, os Pavios, o Chão Salgado, o Santo Amador, a Saragoça, a Defesa, as Cebolas, o Vale da Amoreira, as Águas, a Castinceira, a Bica, o Cabril, a Fonte Salgueiro, o Cabeço, os Carvalhos de Roque, a Lagem Alta…

E tantos outros que agora não me ocorrem.

Conheço-os de cor. Percorri-os a pé, sozinho e acompanhado, inúmeras vezes. Nunca tive sequer uma bicicleta, quando a maior parte dos meus amigos até motorizadas já tinham, mas nunca me senti diminuído por não as ter. Muito cedo compreendi que na vida tem de haver prioridades. E que a família é, entre todas, a primeira. O pouco que ganhava fazia falta para colmatar algumas dessas prioridades e não dava para mais. Por isso, sozinho ou acompanhado, quase sempre com algum livro debaixo do braço, marchava a pé pelos campos e perdia-me horas a fio na companhia da aragem ou do vento até ao pôr do sol e quantas vezes a noite me apanhou ainda longe de casa.

Havia veredas tão seguras como estradas e nelas eu sabia onde estava cada obstáculo a contornar. Hoje nem com óculos graduados vejo bem. Naquele tempo, no meio do mato e em noites cerradas eu “via” a vereda, o caminho, os obstáculos. Mais do que boa visão, era instinto. E que bem sabia o sossego dos campos, a companhia das furtivas raposas, o musical gorjeio dos melros e rouxinóis, o cantar dos grilos e dos ralos. O meu mundo era aquele e nele fui infinitamente feliz.

Por isso depois de muitos sóis já passados venho ainda visitá-lo, as pernas já a doerem e os pés a pesarem demais.

A última vez fui acompanhado pela minha inseparável companheira e quando demos conta estávamos demasiado longe para as nossas energias. Mas gostei. Enchi os olhos de harmonia e o coração de serenidade. Antes de sair de lá olhei demoradamente à minha volta, acariciei as omnipresentes giestas e pensei emocionado:

- Será que irei voltar aqui mais alguma vez?

Disse olá a uma bonita vitela que mal que nos viu logo se encaminhou para nós e pregou um susto monumental à minha marida que pensou que ela lhe ia dar alguma marrada.

- Não tenhas medo! Tranquilizei-a…

A bezerra pastoreava por entre as altas giestas do Monte Velho do tio João Forte, com mais duas ou três irmãs. Provavelmente habituada a que o dono lhes leve sempre algum miminho em forma de feno ou granulado de ração, dirigiu-se a nós à espera do seu “presente” mas quando percebeu que não levávamos nada, seguiu o seu caminho.

E nós, o nosso.

Estava uma tarde linda e no ar pairavam por toda a parte os intensos aromas dos pastos secos a estalarem constantemente ao calor do estio. O cenário transportou-me à minha meninice quando passei pelo carcomido toco do sobreiro que um raio derrubou quase ao meu lado quando era pastor.  Meio desfeito já pelos temporais mas negro ainda pela forte descarga incandescente que caiu do céu e o rasgou de alto a baixo, lá continua de pé indiferente ao tempo e às memórias.

A seguir saltámos para a Tapada da Lagem Alta, onde junto à vereda continua e vai continuar pelos séculos dos séculos o pequeno cancho – que fotografei comovido – de onde eu pulava sem parar naquela manhã que me ferrou num dedo do pé um lacrau que lá morava, enquanto a minha mãe mondava milho um pouco mais abaixo.

Sem que isso signifique que continue a viver no passado, é tão bom e sabe sempre tão bem revisitar os locais que guardam estes testemunhos silenciosos da minha meninice e juventude, a atestarem como foi abençoadamente feliz, mesmo com sustos de tormentosas faíscas e ferroadas de escorpiões.

- Se puder vou lá voltar, pelo menos mais uma vez.

Ou… dez!

Está decidido...


José Coelho

(Texto e foto republicados com algumas modificações)