Resolvemos muitas vezes, eu e a
minha companheira de vida há já 47 anos, calçar as sapatilhas para rumarmos aos
campos desertos da nossa Beirã e desfrutarmos não só do seu ar puríssimo, como
também da sedutora beleza que desponta por toda a parte.
Desde que me conheço que percorro estes campos saltando paredes, subindo canchos, embrenhando-me pelos matagais acompanhado apenas pelo canto da passarada e pelo murmúrio do vento no arvoredo. É um mundo muito meu, capaz de atenuar qualquer desassossego. Tudo o que nos envolve é a paz e harmonia da natureza no seu estado mais puro, algo único, nas cores e odores.
Na Primavera as árvores floridas juntamente com o vistoso amarelo das maias das giestas negrais e a brancura das maias das giestas alveirinhas mais os rendilhados cachos das lindíssimas flores dos pilriteiros – que por aqui chamamos carapeteiros – inundam o ar com o seu inebriante e muito característico perfume para o qual contribui ainda também a abundância de rosmaninhos e madressilvas, bem como a infinita variedade de lírios e outras flores silvestres.
Não há templo mais belo, natural e harmonioso no mundo, não há outro lugar onde nos sintamos mais próximos do Criador e tão parte integrante do Universo.
Já no Verão são os odores indeléveis dos restolhos e dos fenos a secarem ao sol, das noites e madrugadas frescas em oposição à canícula ardente que o meio-dia e as primeiras horas da tarde transportam no seu ventre e fazem ressoar as cigarras cantadeiras não pelos seus dotes vocais, mas porque, fazendo zumbir as asas, a consequente trepidação as refresca um pouco.
Foi por estes lugares que os meus avós
viveram e foram felizes, os meus pais se conheceram e me conceberam, assim como
às minhas irmãs. Por estas tapadas a minha avó, mãe, tias e primas mondaram
trigo, sacharam milho, cantaram quando felizes ou choraram quando tristes,
semeando por este chão o suor do seu cansaço, mas também as lágrimas dos seus
olhos magoados por alguma dor.
Foi ainda por aqui que o meu avô, pai, tios e primos guardaram rebanhos, lavraram a terra à força de braços com charruas e arados puxados por juntas de bois ou por parelhas de machos e mulas, semearam e colheram pão, frutos e legumes, para nos poderem dar de comer.
Por isso estes campos e paisagens fazem parte de mim como a minha própria pele. Por isso sou assim rústico como eles. Desde sempre e nos momentos mais complicados da minha vida me refugiei na sua benfazeja solidão em busca de paz de espírito, de equilíbrio emocional ou daquelas respostas complicadas que só o silêncio nos consegue transmitir.
Passei muitas horas caminhando sem destino pelos seus cabeços e covas, ou simplesmente sentado, sem me dar conta do passar do tempo, no cimo de algum cancho, a ouvir o resmalhar do restolho pela correria de algum javali, raposa ou saca-rabos que desde que sou gente abundaram sempre por estas bandas.
Na guerra, quando percebi que podia não voltar para casa, prometi a mim mesmo que se voltasse, nunca mais de cá sairia. E quase cumpri essa promessa. Assim que voltei – disso darei graças até ao fim da minha vida – fui visitar inúmeras vezes todos os meus lugares preferidos para deles desfrutar de novo e matar a saudade. Porém, tive de ausentar-me outra vez para cumprir a minha missão de chefe de família, já que por aqui não foi possível cumpri-la.
Mas voltava amiúde.
E assim que pude, regressei de vez. Mas encontrei tudo completamente diferente, porque tudo a vida levou. Entes queridos, bons vizinhos, até os quotidianos de outrora se extinguiram inexplicavelmente.
Restam hoje pouco mais do que memórias.
E aquele silêncio que antigamente só se “ouvia” nas profundezas destes campos raianos, invadiu casas e ruas de todos os povoados da região, passando a viver dia e noite paredes-meias conosco.
Ainda assim e se tal depender apenas de mim, é aqui que desejo terminar os meus dias para continuar a deslumbrar-me com cada por-do-sol pois em nenhum outro lugar do mundo são tão magníficos, a ouvir o terno e monótono trru-trru das rolas turcas em cada alvorada, a encantar-me com a ousadia dos melros, dos pintassilgos e de todos os outros “vizinhos” alados que teimam em vir sempre fazer os ninhos nas árvores do meu quintal sem medo de serem incomodados.
José Coelho
(Texto e foto)