O tempo passou e veio a idade, como vem a noite ao cair da tarde!
Nunca o meu sorriso foi forçado. Nunca na minha vida me ri com vontade de chorar como leio por aí que há quem faça. Se rio é porque tenho mesmo vontade, é porque no meu coração reina a serenidade, é porque estou bem. Não faço esses favores a ninguém. Ou é genuíno ou nem sequer existe. De igual modo também não sei, nunca soube, disfarçar a tristeza, a preocupação, a indignação. Se alguma coisa perturbar o meu espírito, a expressão sisuda e dizem que muito mal-encarada, revela e não deixa dúvidas que algo menos bom se passa comigo.
Aprendi a batalhar pelo que queria desde muito pequeno. Contava a minha mãe que eu abalava a fugir rua abaixo assim que ouvia tocar o sino da igreja. Queria ir à missa, algo que nem sequer sabia ainda pronunciar porque lhe chamava "mixa". De pé descalço e calças remendadas que luxos não havia, lá tinha que vir do meio da rua até casa "a toque de caixa", que a tia Florinda não dava baldas nem poupava nas palmadas quando eram precisas, para mostrar que quem mandava era ela.
E fizeram-me tão bem!
Ainda assim não deixei de levar sempre "a minha" avante. Com 5 anos fugi uma tarde à mestra, a querida senhora Vicência Olivença, para me apresentar na Sociedade Recreativa no dia que começaram os ensaios das crianças da catequese para um serão recreativo que se fazia todos os anos na Beirã para a população. Eu não andava ainda na catequese porque não frequentava a escola mas queria lá saber disso. Se as outras crianças podiam eu também tinha que poder. E como ninguém me convidou, fugi à mestra e fui.
Com tal sorte que a D. Mimi e o Sr. Cardoso acharam que eu era capaz de ficar bem no papel de um beirão de Monsanto a interpretar uma cantiga ao desafio com a neta da vizinha Joaquina Servo que era da minha altura. Logo no primeiro arremedo de ensaio assinámos o contrato artístico.
Devia ser hilariante, porque toda a gente se ria à gargalhada. Eu era baixote e a miúda também, vestidos a condizer, aquilo correu mesmo bem. O pior foi a cara da mestra senhora Vicência quando terminou o ensaio. Dera pela minha falta e sabendo que havia ali atividades com crianças logo imaginou para onde eu me tinha escapulido sem sua licença e não achou graça nenhuma. Fui agarrado por uma orelha até casa dela e à noite queixa formal à mãe Florinda que me proibiu de voltar a por os pés na sociedade sob pena de levar uma sova. Valeu a diplomacia da senhora D. Mimi e do Sr Cardoso que conseguiram convencer mãe e mestra a deixarem-me participar.
Depois...
Depois toda a minha vida foi lutar constantemente para alcançar metas. A vida dura do campo e mais tarde a de cabouqueiro nas pedreiras com o meu pai, não me seduziam. Queria ser carteiro ou carregador da CP, empregos estáveis e com melhores ordenados. E por isso, mal completei os 17 anos convenci o meu pai a deixar-me ir voluntário cumprir o serviço militar pois sem esse obstáculo vencido não havia empregos possíveis.
E fui. E passei um mau bocado mas voltei.
Só que o regresso a casa deu-se em plena convulsão do 25 de Abril e os empregos viam-se por um canudo. Bem enviei requerimentos aos CTT e à CP mas... "lamentamos informar que nesta empresa não existe à presente data qualquer concurso para admissão de quadros". Então... Ala para as Minas da Panasqueira. Não imaginava o que era ser mineiro mas como era preciso ganhar a vida, fui. Parar é morrer, não? Ainda nas Minas, casei e fui pai. Então, a mãe, a mulher e filho convenceram-me que embora digno, aquele trabalho era sumamente perigoso e nada saudável.
E convenceram-me a concorrer à GNR...
Nunca me senti mais corajoso ou ousado que qualquer outra pessoa. Só me sinto capaz de alcançar aquilo que acredito estar ao meu alcance. Tenho também o hábito de medir a distância de onde estou até onde penso que sou capaz de ir, de pesar todas as possibilidades na balança da prudência para não falhar compromissos, de não subestimar nunca qualquer dificuldade. Foram infinitas as inquietações. Os medos. As noites mal dormidas. Mas tudo valeu a pena porque infinitos foram também os momentos da mais profunda felicidade por cada conquista, por cada obstáculo vencido, por cada "consegui".
O tempo passou e veio a idade,
como vem a noite ao cair da tarde...
Veio a idade, vieram outras coisas inesperadas e dispensáveis com as quais tenho de conviver agora no silêncio dos meus dias. Acabaram-se as lutas por uma vida melhor mas iniciou-se há algum tempo a esperança de um dia de cada vez. E como não é possível melhor, que ao menos se mantenha assim. Com a noite a aproximar-se neste cair da tarde da minha vida, continuo, apesar do longo caminho percorrido, o mesmo petiz de pata descalça que corria rua abaixo ao ouvir o sino. Que agora já não corre, mas desce a rua em passo tranquilo e já pode ir à mixa sem a mãe lhe ralhar ou prender pela orelha.
Não foi fácil. Muito pelo contrário. A minha maior gratidão é para a maravilhosa Família em cujo seio nasci e a quem devo tudo o que sou. Depois estou também grato à Vida por tudo quanto vivi de bom e de mau. Guardo no coração sempre, em primeiro lugar, as memórias felizes, mas foram sem dúvida os tombos e as dificuldades que me ensinaram a lutar e a resistir. E nunca, em momento algum, perdi de vista aquele que me parece ser o principal objetivo na vida de qualquer pessoa:
Ser capaz de ser feliz, apesar de tudo, mesmo de tudo...
Ser capaz de ser feliz, apesar de tudo, mesmo de tudo...
José Coelho