segunda-feira, 10 de junho de 2019

Quem sai aos seus...

Um dos nossos unimog's atingidos no Belize


Em jeito de adenda ao texto que publiquei ontem quero completá-lo um pouco melhor com mais alguns dados que nunca antes mencionei.

Nessa narrativa referi o ataque dos guerrilheiros do MPLA à nossa ambulância quando esta regressava carregada de feridos numa emboscada e referi também aquele camarada – para mim herói – que por ceder o seu lugar na ambulância a outro camarada, acabou morto à queima-roupa em virtude desse seu generoso gesto. Só não referi outros camaradas que também estiveram sistematicamente cara a cara com a morte durante aqueles dois anos inteiros mas a quem nada de grave aconteceu. Entre eles, o condutor da ambulância, o camarada soldado Lopes que infelizmente já não se encontra entre nós, embora não tivesse sido vítima da guerra.

Devo esta narrativa ao seu filho João Gregório porque quero que ele saiba o quão generoso e valente foi o seu pai, muito antes de ele nascer. Tomei esta decisão ontem, quando vi um like do João Gregório cair naquela narrativa acabada de publicar.  E imediatamente pensei:
- Não imaginas tu amigo João Gregório quem esteve no meio daquele perigo tantas vezes! O teu falecido pai, a acudir aos camaradas feridos…

E decidi contar tudo. Pedi-lhe, obviamente, a devida autorização que imediatamente me concedeu.

Então aqui vai:

Para todos nós, amigo João Gregório, o teu pai era o camarada Lopes. Nome de guerra. Quem foi militar sabe que na tropa não há Zés, nem Joões. Só o apelido também denominado “nome de guerra”. Camarada capitão Serra, camarada sargento Antunes, camarada cabo Rodrigues ou camarada soldado Lopes. Nada mais. Nesse tempo a palavra camarada não conotava com politica mas com algo muito mais fraterno. Irmãos d’armas. Formámos Batalhão em Estremoz onde nos conhecemos. Eu de Marvão ele de Arronches. Eu cabo de transmissões ele soldado condutor-auto. Na guerra tocou-lhe ser nomeado condutor da ambulância.

Todas as vezes que houve que socorrer camaradas debaixo de fogo lá ia o camarada Lopes para o olho do furacão. Sem hesitar, num generoso espírito de acudir, de ajudar, de tirar daquele inferno os camaradas horrivelmente feridos, às vezes. Por isso assistiu a muitos horrores. Ajudou a salvar muitas vidas no transporte de dezenas de camaradas estropiados, alguns dos quais não resistiam ao percurso e morriam na ambulância pelo caminho. Sempre foi assim de semblante sério e fechado. E de poucas palavras. Sei isso muito bem, porque a ambulância era escoltada por outras duas viaturas de apoio com duas secções de atiradores, e sempre, mas sempre mesmo, um operador-rádio. 

Era um excelente camarada o teu pai, João Gregório.  Um verdadeiro amigo, alguém com quem se podia sempre contar. Tu sabes que eu sei o que digo porque sei também que ele falava muito de mim e da guerra onde andámos os dois.

Quis o a sorte a vida ou o destino que regressássemos a casa sãos e salvos, apesar de tudo o que por lá vivemos. E rumámos cada um à sua terra e família. Voltámos a encontrar-nos só dez anos depois em Nisa, eu já sargento para comando do posto da GNR daquela Vila, ele soldado de cavalaria do efectivo do mesmo. As voltas que a vida dá. Obviamente a amizade e cumplicidade adquiridas na guerra fizeram com que entre nós se estabelecesse uma confiança ainda mais forte. Ele tinha um filho. Tu, o ainda pequenito João Gregório. Curiosamente da mesma idade do meu filho Manuel que tinha também um mano mais novo, o Pedro.

Depressa se estabeleceu entre vocês os três essa boa amizade que prevalece desde então até hoje. Os bons amigos são para sempre. Entretanto eu ascendi na carreira em 1992 e saí de Nisa. O camarada amigo Lopes e senhor teu pai atingiu o tempo de serviço e reformou-se. Mas não chegou, por ironia ou fatalidade do destino, a desfrutar da sua merecida aposentação. Passou por tantíssimos perigos, encarou a morte tantíssimas vezes naquele inferno que foi para nós o Maiombe, para súbita e inesperadamente deixar a esposa, o filho, a restante família e os amigos, caído numa horta, o entretém onde decidiu passar os seus dias e onde foi encontrado já sem sinais de vida.

Acompanhei-o à sua última morada com tristeza e mágoa na companhia do meu filho e teu amigo Manuel. Quisemos confortar-te a ti e à senhora tua mãe com a nossa estima e solidariedade nesse negro momento de dor. A vida dá voltas inexplicáveis. Por mais que vivamos nunca seremos capazes de a entender. Que descanse em paz. No meio de todas as suas virtudes e também humanas imperfeições era um bom camarada, um bom amigo, um guerreiro corajoso que com a maior generosidade muitas vezes expôs a sua própria vida para ajudar a salvar a de outros. No fundo aquilo que tu fazes hoje também generosamente como bombeiro, João Gregório. Quem sai aos seus...

Orgulha-te muito, por tudo isso, do teu falecido pai. Sei, porque te conheço desde miúdo, que és tão boa pessoa e tão generoso como ele. Que Deus te proteja e guarde sempre. Desejo para ti tudo aquilo que desejo também para os meus filhos. Que sejam felizes. E conta sempre, mas mesmo sempre, connosco...

José Coelho
10 Jun’19