terça-feira, 18 de junho de 2019

Trabalhem malandros que para isso vos pagam …

A bica depois do almoço no bar do Posto - Finais dos anos 80


Nos primeiros dois anos da minha função de comandante do posto de Nisa decidi conhecer palmo a palmo toda a área cuja ordem e tranquilidade públicas estavam confiadas à responsabilidade do posto para poder coordenar melhor o policiamento e vigilância de tão grande extensão territorial.

Foram precisas muitas horas a calcorrear de jipe e a pé as povoações e os seus acessos para perceber a intrincada teia de estradas e caminhos rurais pelas encostas e pinhais da serra de S. Simão a norte e nascente, depois pelas densas matas de eucaliptos a sul e poente de Nisa.

Apesar de todo o meu empenho, as queixas dos mais diversos furtos sucediam-se diariamente no posto com prevalência para o desaparecimento dos gados que enxameiam ainda hoje por toda a área de um concelho eminentemente produtor do leite que fabrica o queijo de Nisa DOP cuja fama há muito cruzou fronteiras.

Vi-me por isso na necessidade de muito em segredo como convinha para não espantar os ladrões antes de os conseguirmos apanhar, pedir ajuda à Polícia Judiciária de Tomar que tal como nós tinha também a seu cargo a investigação da área de Nisa para os crimes da sua exclusiva competência. Assim começámos um trabalho conjunto cada um na sua esfera de comando mas orientado todo ele para um só objectivo. Travar a onda de roubos e apanhar os ladrões. 

Na sua maioria os roubos eram levados a cabo por um bando de ladrões devidamente chefiados por um Ali Bábá das bandas de Belmonte que organizadamente vinham durante o dia marcar o terreno para durante a noite efectuarem os assaltos e transportar imediatamente os gados para o interior da Beira Baixa de onde os encaminhavam para alguns matadouros mais a norte numa acção perfeitamente concertada que seria impossível descobrir se não tivéssemos a excelente e competentíssima polícia judiciária neste país de xicos-espertos onde só não consegue enriquecer e singrar na vida quem trabalha honradamente.

Foram meses de muito trabalho e secretismo. Foram também meses de cenas caricatas e divertidas que aconteciam e nos ajudavam a descontrair esquecendo um pouco as frustrações imensas que qualquer investigação criminal inesperadamente proporciona quando por exemplo nos parece que estamos mesmo quase, quase, a atingir um alvo e de repente verificamos que todas as pistas que vínhamos a seguir eram falsas. Uma dessas situações hilariantes foi quando, depois de muita investigação, se conseguiu recuperar uma dúzia de cabras e cabritos que tinham sido roubadas a um casal de idosos no Monte do Pardo.

Quisemos eu e o inspector da PJ estar presentes no momento da descarga do gado e respectiva devolução aos donos. Por um lado por nos sentirmos realizados com o resultado, por outro lado para transmitirmos alguma confiança às populações que andavam inquietas e com o permanente receio de verem uma noite qualquer desaparecer também o seu gado.

A nossa presença naquele acto era simbólica e queria no fundo incutir apenas algum sossego mas também fazer sentir que estávamos ali, no terreno e perto deles, a tentar cumprir o nosso dever. Assim que as cabras lhe foram entregues e verificado que nenhuma faltava veio o seu dono de boné na mão muito reconhecido agradecer veementemente por termos conseguido recuperar o seu querido gadinho. 

Eis senão quando muito dona do seu nariz e aparentemente zangada, a mulher do pastor não lhe pareceu bem tanto agradecimento e sentenciou alterada:

- Déééhhh! Ó hóme de Dês tu tá mazé calade, nã tés nada ca'gradecê.... Só fizérim a sua obrigaçã olha-lá-ô! É pra isso que les páguim...

Abalou a falar alto mais coisas imperceptíveis tocando as cabras deixando-nos a todos atónitos com a tão acertiva sentença. Ainda mais atónito que nós ficou o "sê hóme" que pediu desculpa e agradeceu outra vez antes de marchar atrás dela mais das suas cabrinhas.

E nós ficámos a vê-los ir, rindo a bandeiras despregadas.

- Toma que já almoçaste! Retorquiu, olhando para mim com ar divertido, o amigo Manel inspector. 

- Vai mas é trabalhar, malandro...


José Coelho
In Histórias do Cota