Belize - Cabinda - Angola - Natal 1973
(...)
O
Boeing 747 descolou do aeroporto de Luanda numa gloriosa manhã de inícios de Junho
de 1974. Para trás o estropiado Batalhão de Cavalaria 3871 - Cavaleiros do
Maiombe - com quase uma Companhia a menos deixou finalmente o continente africano.
Apesar da barbárie da guerra reafirmo existir por lá muito boa gente, diferente
apenas na cor e nos costumes, igual em tudo o resto. Apesar também de os ideais
de cada uma das partes no conflito serem opostos, a esmagadora maioria da
população nada tinha a ver com ele. Pelo contrário, milhares de nativos residentes
nas zonas onde se desenrolavam as frentes de guerra mais não eram também muitas
vezes do que inocentes vítimas encurraladas entre nós e os guerrilheiros, dos
quais nós e eles desconfiávamos, sendo por isso injusta e frequentemente
tratados como espiões inimigos por ambas as partes.
É
assim em todas as guerras; o cidadão anónimo é quem acaba por arcar com as piores
consequências. O povo africano queria e tinha o direito de ser livre e independente
para decidir o seu futuro e rumo. Nós éramos o ocupante que em nome de um colonialismo
já então completamente ultrapassado e desajustado da realidade visava apenas interesses económicos geridos a partir de Lisboa a oito mil quilómetros de
distância por uma política ditatorial cega incapaz de vislumbrar os sinais do
tempo e do resto do mundo que não só desaprovava a sua política colonial como,
por isso mesmo, apoiava e armava os movimentos independentistas.
Durou oito longas horas o
voo entre Luanda e Lisboa. Por mais estranho que pareça não se vislumbrava em
rosto nenhum qualquer expressão de exuberante felicidade! Quanto muito expressões de alívio, de incredulidade por ver chegado este dia. Eram
cerca das cinco da tarde quando começámos a avistar Portugal lá do alto, muito
alto ainda. A Costa Vicentina primeiro, o Litoral Alentejano a seguir, e, por
fim, estávamos a sobrevoar Lisboa.
Aterrámos perto das cinco e meia da tarde. Formámos
ordeiramente como nos tinha sido ordenado para as últimas instruções e
recomendações. No aeroporto não havia familiares à nossa espera porque tinham
sido encaminhados para o antigo Regimento de Artilharia Nº 1 em Lisboa - RAL 1 - onde iríamos entregar o resto do
fardamento e desmobilizar. Tudo isso demorou apenas mais uma hora e meia. Por
fim, manifestamente comovidos todos, despedimo-nos uns dos outros para corrermos até ao
exterior do quartel à procura dos entes queridos.
E…
Lá
estava ela! A minha saudosa e querida Mãe lavada em lágrimas, ansiosa, muito
mais magra do que eu alguma vez a imaginara. No seu amado rosto o mais
evidente eram umas profundas olheiras, sinal mais que revelador da
intranquilidade das suas noites e dos seus dias durante todo o tempo que
durou a minha ausência. Caímos nos braços um do outro soluçando incapazes de
conter o caudal de ternura e fome de carinho mútuos porque sempre
fomos (…) particularmente amigos e cúmplices um do
outro, além de que, por certo, também ambos pensámos inúmeras vezes se nos voltaríamos a ver.
Foi
uma torrente caudalosa de sentimentos e emoções contidos durante 810 longos e sofridos dias a libertar-se num turbilhão impossível de conter e palavra alguma consegue descrever. Também eu vinha mudado e muito diferente. Muito mesmo. Não só com a pele mais escura queimada pelo clima quente, como
também bastante magro e escanzelado, coisa que nunca fora, regressando com menos de 60 quilos
dos 75 que levara. Mas, sobretudo, com uma mentalidade
completamente estranha àquela que me assistia ao partir em Março de 1972.
Devo
acrescentar antes de terminar por hoje que nunca mas nunca mesmo contei a ninguém as atrocidades que por lá nos aconteciam. Nem eu nem nenhum camarada o
fazia. Era ponto de honra de todos e de cada um não inquietar ainda mais quem estava
longe e vivia já naturalmente inquieto com a nossa ausência, além de que em nada nos poderiam valer. Na correspondência com
a família e amizades apenas se referia que estava tudo bem, que aquilo era um
mar de rosas. Até as fotos que enviávamos eram cuidadosamente preparadas quase
sempre em traje civil como se estivéssemos numa estância turística. E se
fardados nas fotos, mostrávamos com toda a certeza um semblante sereno. Truques simples que só quem ama os seus, sabe compreender... (continua na próxima narrativa).
José Coelho
In Histórias do Cota