Com o camarada e amigo Borges, no Belize
(...)
... Aquele
ataque na curva da morte que vitimou o Vitoriano foi apenas o começo. Dali em
diante nunca mais houve paz para os Cavaleiros do Maiombe. O MPLA que estava a
“levar nas lonas” no Leste de Angola “virou-se” em força para Cabinda. Equipado
já então com os lança granadas foguete RPG2 e RPG7, armas terríveis de fácil
transporte e pontaria, assim como com as espingardas Kalashnikov, contra as
nossas já ultrapassadas G3 e as nossas bazucas de difícil manejo e transporte,
empenhou-se em dizimar quanto pôde as unidades sediadas no enclave de Cabinda.
Ao “meu” BCav3871 conseguiu de tal modo que das suas quatro companhias inicias
pouco mais de 3 regressaram a casa sãs e salvas no final da comissão. Mortos em combate 18. Feridos graves evacuados 103. Total de baixas 121.
Recordo
cada camarada morto ou gravemente ferido porque cada um deles era um
amigo muito mais próximo de parente do que de amigo. Viver em grupo naquelas
condições não só aproxima as pessoas como estabelece também laços de profunda
fraternidade e solidariedade. O problema de um tornava-se no problema de todos.
De tal modo assim é que ainda hoje mantenho contacto com alguns desses velhos
camaradas d’armas.
Nunca esqueci.
Recordo aquele camarada que ficou ferido nas pernas mas como os ferimentos
permitiam que viesse sentado num unimog generosamente cedeu o seu lugar na
ambulância a outro camarada também ferido com menor gravidade mas que iria melhor deitado numa maca na ambulância. Só que, algumas centenas de metros mais à frente já no
regresso ao quartel, a coluna de socorro foi novamente alvejada depois de
recolher os estropiados. E o generoso camarada ferido nas pernas que vinha no
unimog, por não ter conseguido saltar da viatura a tempo, morreu sentado no banco, enquanto o outro camarada que
vinha na ambulância no seu lugar nada mais sofreu. É
internacionalmente convencionado nunca atacar ambulâncias na evacuação de feridos, por isso, naquela tarde, o MPLA excedeu
todos os limites da compreensão humana. Aquilo não foi um acto de guerra.
Foi uma selvajaria sem tamanho, das muitas que acontecem em todas as guerras e nunca são noticiadas, ficando gravadas apenas na memória de quem por elas passou.
Recordo também aquela coluna de camaradas de Sanga-Planície furiosamente atacada e da qual resultaram 3 mortos e 10 feridos quando se
deslocavam para a aldeia de Kungombundo para irem inaugurar uma pequena escola que
os Cavaleiros do Maiombe tinham ajudado a construir. Nessa coluna se
transportava também algum mobiliário e material escolar quer para a escola quer para as
crianças do fiote. Terá sido a forma que o MPLA entendeu justa para compensar o empenho “dos
branco” como eles nos chamavam?
A revolta que ficou na “malta” era
insuportável.
Recordo
também entre muitas outras coisas ainda a resignação daquele camarada que pisou uma mina que lhe decepou um pé. Com o estrondo do rebentamento toda
a secção se atirou ao chão e ficou abrigada no mato à espera do que viesse a
seguir. Por fim e como mais nada buliu, toda a gente percebeu o que tinha
acontecido. Fora accionada uma mina. Ao chegarem
junto do soldado Bento, o ferido, estava este já a limpar com o lenço a terra que
ficara agarrada ao coto sem pé. Ao ver os camaradas, comentou com enorme sangue frio:
- Podia ter sido pior… Um pé postiço e isto remedeia-se!
Era o tal espírito de resignação e de aceitação que lá mais atrás referi. Qualquer
coisa que tivesse algum remédio seria sempre melhor do que a morte.
Foi
de imediato accionado socorro via rádio e pedido um meio aéreo para evacuar o Bento do meio do mato. Foi de facto enviado um helicóptero que apareceu muito tempo depois por culpa da fraca
visibilidade provocada pelo cacimbo e para desespero de todos os que ali aguardavam
a sua chegada. Valeu ao ferido o impecável desempenho do camarada enfermeiro que lhe prestou os primeiros socorros, fez e aliviou sucessivamente um garrote e ministrou morfina para ele não sentir dores nem entrar em estado de choque.
Recordo finalmente o meu excelente camarada de equipa e grande amigo soldado de
transmissões Borges que insistentemente me pediu para o deixar ir no meu lugar
a Lândana porque tinha saudades do mar. Na vida civil ele era pescador. Da Afurada
em Gaia. Mas no Maiombe o oceano mais próximo ficava na baía de Lândana, a mais de 200 km de onde nos encontrávamos. E naquele
dia, pela escala de serviço, calhava-me a mim ser o operador-radio da coluna auto que iria deslocar-se àquela localidade. Perante tão insistentes pedidos e depois
de a troca ter sido autorizada pelo comandante do pelotão de
transmissões, o tenente Luciano Amaral Dias – hoje um eminente advogado numa das cidades da serra da Estrela – lá foi, feliz da vida e no meu lugar, o camarada pescador matar saudades do seu querido mar.
Em
má hora o fez. Tão gravemente ferido ficou na viatura em que seguia com o radio quando esta capotou num aparatoso acidente que o soldado Borges teve de ser imediatamente evacuado para Luanda por via aérea e dali para Lisboa. Não mais voltou
ao Maiombe e não mais nos voltámos a ver. Consegui saber, alguns anos mais tarde, que ele já não se encontrava entre nós. Até hoje não compreendi as voltas que o destino às vezes dá. O habitual era precisamente o
contrário. Sendo eu o cabo mais antigo da equipa de transmissões e chefe directo deles, era também eu quem ia muitas vezes para a mata no seu lugar. Recorrentemente e na vez de qualquer um deles, pois éramos oito. Ou
porque o que estava escalado queria ir jogar futebol coisa que eu não gostava, ou porque ia ser transmitido via radio algum relato de jogo importante, coisa a que eu também não ligava, ou por outra qualquer razão.
Naquele dia o camarada Borges só queria mesmo matar saudades de algo que também amava. O mar. Vê-lo, ouvi-lo, tocar-lhe, sentir o seu odor salgado, quiçá imaginando que na Afurada, do outro lado do mesmo mar, o seu pai pescador, algum dos seus três filhos, a sua esposa ou a sua mãe, estariam também por lá à beira d'água com saudades. Dele...
José
Coelho in Histórias do Cota
Beirã 09 Jul'19