Auto-retrato
2018.05.17
Ficará revolta na pobreza
"Com o fim do comboio
regional de passageiros no Ramal de Cáceres anunciado para daqui a poucos
dias, encerra também o melhor capítulo da vida de muita gente. Vou, a título de
mero exemplo, cingir-me ao que a mim diz respeito, porque nasci a ouvir o silvo
agudo e rouco daquelas então velhas máquinas negras, fumarentas, de grandes rodas
e manivelas gigantescas movidas a vapor, que, ao chegarem muitas vezes à
estação, enchiam o ar de um nevoeiro quente e húmido que se estendia por toda a
parte baixa da aldeia quando tinham que descarregar o excesso de pressão que
acumulavam no percurso.
A minha casa situa-se num alto
sobranceiro à Estação, a qual posso ver das janelas traseiras ou do
quintal, de dia ou de noite, porquanto os holofotes que iluminam todo o seu
perímetro rasgam a escuridão e reflectem a sua poderosa luminosidade por toda
a colina até ao depósito abastecedor de água da povoação, além bem no alto.
Mas não só. Toda a minha vida é um mar de boas recordações. Mal sai da estação
de Valência de Alcântara no país vizinho, poucos quilómetros percorridos,
assoma a via férrea ao alto do Sesmo e logo o potente rugido das máquinas se
anuncia ao longe, fazendo-se ouvir no meu quarto, desde que me lembro de ser
gente.
Do outro lado da nossa casa, a
oriente, onde se situa o quarto que sempre foi dos meus pais, era comum
ouvi-los comentar:
- Hum… Vai haver mudança de
tempo. Esta noite os comboios ouviam-se logo assim que chegavam à curva da
Atalaia! Também a casa dos meus avós maternos se situava junto à passagem de
nível da Cavalinha, nas traseiras da Caseta dos Assentadores cujas esposas eram
as guardas que tinham por missão fechar e abrir as cancelas para passagem
segura das inúmeras composições de mercadorias ou de passageiros que circulavam
dia e noite.
Menino de tenra idade,
entregava-me a minha mãe algumas vezes ao cuidado do meu avô Zé Lourenço, para
ela poder ir com a minha avó Amélia sachar milho, ou outros trabalhos à jorna,
próprios das mulheres do campo desse tempo. E lá andava eu todo o dia com ele,
por aquelas tapadas de um e do outro lado da linha a ver os comboios passar
enquanto o avô guardava as ovelhas, a saltar de pedra em pedra, a ouvir “as
meninas a cantar” que ele dizia ser aquele zumbido cacofónico que se percebia
ao encostar o ouvido aos postes dos fios telefónicos existentes ao longo da
linha férrea.
E depois…
Bem… Depois, a ida a Évora por
comboio quando aos 17 anos de idade e por me ter oferecido voluntário para a
tropa, fui chamado à inspecção militar ao hoje extinto RI16 na Cidade-museu,
numa viagem de várias horas e outros tantos transbordos, o primeiro dos quais
na Torre das Vargens para a estação de Portalegre e ali de novo para Estremoz e
Évora. Foi uma aventura e tanto. Depois, ao longo de muitas décadas, as
confortáveis viagens com o comboio sempre aqui à porta, a levar-me na ida ou a
trazer-me na volta. Elvas como recruta, Lisboa como especialista, Estremoz
novamente já mobilizado para Angola, Santa Margarida a aguardar embarque para a
guerra, e, finalmente, para me devolver à Beirã e à minha gente são e salvo 37
longos meses depois.
Consequência de muitas injustiças
de que fui alvo, foi o comboio que me levou em 1975 para a Beira Baixa, via
Abrantes, Castelo Branco e Fundão, com destino às Minas da Panasqueira. Aqui
tive sempre o mesmo transporte seguro e pronto quase à porta. Para qualquer
parte do país e pelo Ramal de Cáceres que sempre dispôs de excelentes acessos
para muitos e diversificados destinos, bastando para isso aceder à Torre das
Vargens, a Abrantes, ao Entroncamento ou a Lisboa. De manhã à noite, eram
várias as opções de escolha nos horários de partida ou de chegada e dias havia
que a partir da estação de Castelo de Vide já não havia lugares sentados vagos,
pelo que se tinha que viajar de pé nas coxias e corredores das carruagens.
Mais tarde, quando, em função das
minhas pretensões de ascender na carreira profissional, uma vez mais, durante
três longos e consecutivos anos, viajei no comboio para a capital onde
frequentei os respectivos cursos de promoção no Alto da Ajuda, rumando depois a
São João da Madeira e ao Porto como estagiário, sempre com a excelente
comodidade de poder viajar de comboio todas as semanas, para onde quer que
necessitava deslocar-me. E como eu, milhares de passageiros de toda esta
região. É inacreditável que hoje, passadas pouco mais de duas décadas, isto
esteja a acontecer. Suprimir o serviço regional de passageiros no Ramal de
Cáceres é, por outras palavras, encerrar este serviço público definitivamente.
Não tenhamos ilusões.
Restará, daqui nem diante, o
Lusitânia Comboio-Hotel que utilizará este percurso duas vezes ao dia – ou à
noite – entre Lisboa e Madrid e vice-versa. Até quando?
Todos nós sabemos. Mal se inaugure
o tão badalado TGV, o Lusitânia deixará de ser necessário. E o Ramal de Cáceres
encher-se-á de silvas e mato em todo o seu percurso, as suas lindíssimas
Estações definharão até cairem e a memória de um povo que esteve ligado a tudo
isto durante quase um século e meio, desaparecerá inexoravelmente na bruma do
tempo. É verdade que neste momento talvez não seja rentável. Mas porquê? Serão
os serviços oferecidos pela CP eficientes? E se, em vez de suprimirem este
serviço regional de passageiros para suprimirem eventuais prejuízos, porque não
suprimem antes um ou dois lugares na Administração da CP, mais os seus chorudos
ordenadões, mais os carros topo de gama com motorista e um nunca mais acabar de
mordomias que, isso sim, é o que verdadeiramente causa prejuízos às empresas?
Vendo as coisas por outro prisma
ainda, não pagam as populações desta esquecida zona do nosso país os seus
impostos como todos os outros? Então, porque têm que os Marvanenses, os
Castelovidenses, os Cratenses ou os Nisenses, contribuir com as suas divisas
para pagarem auto-estradas que não atravessam os seus concelhos, pontes sobre
Tejo, Douro ou Guadiana que pouco ou nada usam, e muitas outras merdas
megalómanas que servem só para quem lá vive perto, mas não há a porra de uns
míseros euros para manter o catano de uma automotora que sirva nem que seja só
a minha vizinha Júlia que tem a sua filha e os seus netos no Entrocamento, é
viúva, já entradota na idade e não tem outra forma de se deslocar?
Ou será que...
Os habitantes destes municípios
NÃO SÃO PORTUGUESES como aqueles do litoral ou das grandes metrópoles onde se
faz tudo e mais alguma coisa nem que para isso os governos tenham que se
endividar até aos olhos?
Ou ainda que...
Nós por cá só somos cidadãos como
os outros, quando é preciso encher-lhes o cu de votos? "
in
http://tocadoscoelhosbeira.blogspot.com/2011/01/27