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Há quem lhes chame só anjos,
eu chamo-lhes também amigos
Depois
de me ouvir atentamente, o camarada ficou um bom bocado em silêncio como que a
pensar no que iria dizer-me.
E por fim falou:
- Concordo com tudo o que me disse e sei que nada fez de errado para ser perseguido como tem sido. Sabe, Coelho, há senhores "fulanos de tal" por detrás de tudo
isso e são esses que querem a sua cabeça. Por isso têm manobrado os "cordelinhos" na tentativa cobarde de o prejudicarem. O nosso Capitão Comandante da Companhia é um bom homem. Vá falar com
ele e peça-lhe que o ajude a ir para mais perto da sua família. Não tem nada a
perder…
Nessa
noite dormi pouco e mal. Não me saía da cabeça o sensato conselho do velho camarada e nem o
deixei arrefecer. Fui mesmo falar com o bondoso Comandante da Companhia. De pernas trémulas subi
as escadas de acesso aos claustros do primeiro andar onde se situavam os
gabinetes do comando. Passei em frente do gabinete do oficial subalterno que mais mal e injustamente me tratou em toda a minha vida, mas nem para lá olhei.
Dirigi-me ao outro, um pouco mais à frente e ao qual eu pretendia aceder. Bati suavemente à porta com o coração a querer saltar-me pela boca de tão agitado. Era um gabinete simpático antecedido por uma sala de espera com
vários maples, ampla e cuidadosamente arrumada, com um aspecto muito confortável.
Inspirava
tranquilidade, e, sobretudo, a metódica organização do seu inquilino.
Ouvi a voz dele mandar-me entrar, pedi licença e entrei. O Comandante da Companhia
estava a escrever pacificamente. Tinha a secretária repleta de papéis que lia e
a seguir rubricava. E tinha também um ar tão bondoso, tão paternal, que fiquei
imediatamente mais tranquilo e à vontade. Cumprimentei-o respeitosamente fazendo a respectiva
continência e apresentei-me como era da praxe.
-
Então o que o traz por aqui, senhor Coelho? Perguntou, sem qualquer vestígio de arrogância,
muito pelo contrário, afavelmente e com uma amabilidade que me surpreendeu,
acostumado como estava ao tom irónico, gozão, mordaz e venenoso com que o outro oficial do gabinete ao lado falava sempre comigo. E foi aquela atitude serena e afável que, pela primeira vez
nos últimos dez meses, fez com que eu me sentisse gente, relaxasse um pouco e
baixasse aliviado a minha postura autodefensiva.
Aquele excelentíssimo Senhor que sempre o foi em todas as suas atitudes, era uma personalidade
muito querida na cidade de Portalegre e correspondia exatamente ao perfil que o
meu camarada me tinha descrito no decorrer da patrulha no dia anterior. Uma bondade de pessoa! Infelizmente já não está entre nós mas deixou saudades.
Muitas mesmo, quer no coração dos inúmeros militares que comandou e ajudou, quer na comunidade
onde quase toda a sua vida exerceu funções profissionais mas não só.
Já
sem qualquer vestígio de temor, expus-lhe o que me levara à sua presença:
-
Que tinha declaração de transferência pendente para o Posto de Castelo de Vide onde tinha já em vista uma casa para alugar em fase de acabamento de obras
de restauro – o que era mesmo verdade – e sabia que ia dar-se uma vaga naquele Posto muito em breve;
-
Que andava longe de casa da mulher e do filho desde que me tinha casado há mais de dois anos e ambicionava reunir toda a família de uma vez por todas.
-
E que vinha pedir-lhe, caso ele quisesse e pudesse, que fizesse o favor de
me colocar naquele Posto logo que fosse possível, uma vez que na lista de
transferências recentemente publicada em Ordem de Serviço da Companhia de Portalegre eu constava em
número um para aquela vaga, logo, deduzia que não haveria prejuízo para terceiros.
Assim, quase num só fôlego, saiu-me aquilo tudo e também uma lágrima piegas nada
fingida a acusar o meu fragilizado estado de espírito por tudo o que vinha
passando desde que pusera os pés naquele velho convento, julgando, como
qualquer um dos meus outros camaradas, que seria simplesmente para estudar e
aprender a ser um guarda republicano competente e digno.
O distinto senhor ouviu-me do princípio ao fim sem pronunciar uma só palavra.
Pude perceber na sua expressão que não ficou nada surpreendido com o meu
pedido. Tive mesmo uma indelével sensação que ele até estaria já à espera. A gente
percebe essas coisas instintivamente. Sejam boas ou más, não sei muito bem como, mas
percebe-as. Decerto também não era eu o primeiro guarda que ali ia pedir-lhe auxílio.
Assim que acabei de falar ele pegou no telefone e falou para algures. Mandou que lhe trouxessem
a pasta das transferências. Pouco depois bateram à porta e um Cabo da Secretaria do Comando veio trazer o que fora solicitado. Foi mandado aguardar ali também,
enquanto a pasta era consultada. O comandante viu o que queria ver, fechou a
pasta, devolveu-a e o Cabo voltou a sair.
-
Fique descansado – disse-me – vou ver o que se pode fazer. Agora volte descansado à sua
vida…
Saí
com uma estranha e íntima paz interior. Tinha corrido muito bem, graças a Deus.
Em
boa hora lá fui.
Guardo até hoje a mais profunda convicção que aquele velho camarada de patrulha do dia anterior foi um anjo em forma de amigo que Deus enviou
para orientar os meus passos e suavizar um pouco a dura caminhada que
eu vinha percorrendo havia já demasiado tempo.
De tal modo foi eficaz aquele conselho que, apenas uma semana depois, fui chamado para me apresentar imediatamente no
gabinete do Comandante da Companhia.
Entretanto
e à cautela, não tinha falado rigorosamente com ninguém acerca da minha subida
ao gabinete para evitar especulações e comentários desnecessários.
Subi as escadas do claustro a correr na expectativa que seria qualquer coisa relacionada com o
pedido que tinha feito dias antes.
E
não me enganei:
-
Senhor Coelho tenho muito boas notícias para lhe dar! Foi a sua resposta à
minha institucional continência. E prosseguiu:
- Está já a ser preparada a publicação em ordem de serviço e a guia de marcha
para o senhor se ir apresentar no posto de Castelo de Vide no dia um de Novembro. Vai
substituir o homem que passará à reforma em Dezembro, mas você vai já andando para melhor se adaptar e conhecer o restante efetivo. É um Posto famoso pelas boas qualidades
dos militares que lá prestam serviço, quase todos homens já com muitos anos de Guarda. Requere muito juízo e compostura, em virtude da quantidade de turistas e outras personalidades que sempre por lá deambulam. Muitas vezes são até alguns ministros que ali vão passar as suas férias. Por isso porte-se bem e trabalhe melhor ainda. Pode a partir de hoje então, começar já a reunir a sua família. E boa sorte!
De uma assentada, com a serenidade que caracteriza as pessoas de excepção e de
boa índole, como se estivesse a anunciar-me a coisa mais simples e banal deste
mundo.
O
dia um de Novembro era… Dali
a dois dias.
José
Coelho
in Histórias do Cota