Foto que o filho Pedro fez no último Natal. Às vezes fico assim, ausente.
À beirinha dos 65, sinto muitas vezes que ja vivi 130. A sério.
Primeiro classificado o comuna?
Entrámos a passos largos na recta final do curso. Aparentemente a minha perseverança e se
calhar também a minha inocência nos “crimes” que me eram imputados corriam a meu favor. As “bocas” venenosas continuaram a picar-me os miolos pois esse calvário durou do primeiro ao ultimo dia do curso de formação mas
batiam de chapa na minha completa e total indiferença. Nem sequer os meus
camaradas de turma ligavam também já àquilo. Tive a sorte e o privilégio de
nunca ter sentido qualquer animosidade da parte deles, muito pelo contrário. Senti-os
sempre solidários nas suas atitudes, tendo havido até um deles que, num
secreto desabafo, me sussurrou uma vez:
- Eu não aguentava o que tu tens aqui aguentado, Coelho. Já me tinha ido embora. Mas não ia sem partir primeiro os
cornos a um cabrão destes…
Já
muito perto do fim e no decorrer de uma aula enganei-me a colocar o meu
número de matrícula ao preencher a dispensa do fim-de-semana. Coisa
insignificante. Um hífen onde não devia estar. Ao ver o
erro, o sargento aproveitou imediatamente para se atirar a mim ferozmente na
presença dos meus camaradas vociferando vermelho de raiva:
-
Seu burro! Seu analfabeto! Se não sabe escrever o que anda aqui a fazer?
Já
farto de ser espezinhado não me contive que não dissesse:
-
Já pedi desculpa. O meu sargento nunca se engana?
O
que fui eu dizer!
O
homem quase teve uma apoplexia ali na minha frente. Ele já era vermelho por
natureza mas naquele dia ficou roxo.
-
Vai dar-lhe um treco, pensei.
Mas
não. Olhou-me com infinito desprezo e indisfarçada hostilidade para retorquir pausadamente, entre dentes:
-
Ponha-se a pau, Coelho. Você comigo não brinca! Olhe que ainda não tem o tacho
garantido. Mije fora do penico e quem corre consigo daqui para fora, sou eu. Está avisado!
Garanto-vos
que não tomei quaisquer precauções. Não me intimidaram nunca. Sinceramente não me importava
nadinha de voltar de novo para as Minas da Panasqueira das quais não me tinha
ainda esquecido nem daquela quantidade de amigos impecáveis, os quais, sendo
gente sem grande formação académica e cultura, davam lições de humanidade e de respeito pelo próximo que estes senhores fulanos de tal “mandantes” da GNR em momento
algum desde que os conhecera demonstravam possuir.
Em
vez de me intimidar agarrei-me desalmadamente aos “canhenhos” e estudava muitas vezes até me arderem já os olhos
de cansaço. Quase comia aqueles manuais e livros, tanta era a minha
força e determinação. Decorei (quase) tudo, de trás para a frente e da
frente para trás. Queimei as pestanas mas o resultado
foi muito compensador. Quando tiveram início as provas escritas semanais,
consegui, graças a Deus, superar, EM TODAS AS PROVAS, a média aritmética do
pelotão inteiro. Testes com 17 outros 18 valores, certinhos e direitinhos, teste sim, teste sim. Não havia notas mais altas porque, diziam os bosses, um 18 era o máximo que podiam conceder, pois dali para cima seria considerado saberem os alunos mais do que os mestres, coisa de todo intolerável.
Os
“gajos” ficavam estupefactos e as caras deles para minha enorme delícia eram
o reflexo da sua íntima irritação perante tais resultados. Ali, se calhar, pensava eu, não podiam meter a unha. Estava lá escrito, preto no branco. Mas mais tarde percebi que para aqueles fulanos valia tudo e não havia impossíveis.
Quero ainda dizer-vos que existe a possibilidade de ser ouvido o testemunho dos meus camaradas de alistamento ainda vivos e de saúde à excepção do camarada Churro da Beira Baixa que
faleceu recentemente, para confirmar, quem quiser, tudo aquilo que aqui descrevo e que é apenas e só a integral narrativa dos factos. Tive em conta também o que muitos deles me confidenciaram após terminado o pesadelo do Curso
de Formação de raças acerca de outras barbaridades que contra mim foram levadas a efeito quando eu não estava sequer presente para poder defender-me.
E se
tudo isso não fosse só por si já suficiente, devo acrescentar que guardo religiosamente como se fossem um tesouro as provas perenes da mais revoltante
injustiça humana de que alguma vez fui alvo: Todos os cadernos e manuais, bem como as notas atribuídas a cada teste.
Não fui como me era devido por direito, o primeiro
classificado do curso. De forma indecentemente manipulada por quem o podia fazer, passei, em menos de 24 horas, de primeiro para segundo classificado, apesar de ter uma média única e sempre a mais alta de todo o pelotão, de dezassete para dezasseis valores. Muito perto de mim também com excelentes notas mas ligeiramente abaixo das minhas e como segundo melhor classificado do curso, andou sempre um camarada de Santo Aleixo, bom moço e muito bom amigo, o qual, muitas
vezes depois, nos anos que se seguiram, comentava para quem o queria ouvir:
-
O primeiro classificado com melhor nota do curso era o Coelho. Mas por vingança de quem mandava, podia e queria, meteram-me lá a mim…
Sempre foi um homem com H grande, este camarada. Justo e honesto atè à medula. Em vez de ficar satisfeito sentiu-se também usado numa contenda que não era sua. Aquele primeiro lugar nunca o envaideceu. Muito pelo contrário. Todos os camaradas instruendos torciam por mim e sabiam que o meu objetivo não era disputar troféus. Era apenas e tão só a fórmula encontrada para conseguir manter-me à tona no curso sem favores de ninguém para combater a canalhice que me rodeou sempre.
Mais uma vez o “staf mandante” decidira, na sua enviesada justiça, que não iria à tribuna de honra receber o diploma de melhor classificado, um “comuna”.
E não havendo mais por onde pegar, no último e decisivo teste, “por acaso”, em
vez de um 17, tive só um 13. E o segundo classificado passou de imediato para o primeiro lugar, ficando eu em segundo...
José
Coelho in Histórias do Cota