Imagem copiada do Google
Preso por ter cão, preso por o não
ter
A
colocação no Posto de Portalegre deu-me finalmente a oportunidade de conhecer
ao vivo e em direto a tão falada reforma agrária. Aquela – em meu entender – deplorável
asneira político-partidária resultante da Revolução de Abril que opunha
ferozmente os donos das herdades àqueles que irregularmente as tinham invadido
e ocupado.
No
meio da contenda para mediar o conflito – nem sempre de forma isenta – cabia à
Guarda estar presente a fim de evitar desacatos, proteger os técnicos do
Ministério da Agricultura ou seus delegados, e, em suma, fazer cumprir a Lei,
mesmo que algumas vezes inevitavelmente tivesse que usar a força para o
conseguir.
Para tal missão eram diariamente escalados vários militares de cada Posto da área para formar uma secção ou um pelotão de manutenção da ordem pública, variando o
dispositivo em função da probabilidade prevista de risco e de conflito no local
programado.
Eram
dias muito atribulados a percorrer caminhos de terra batida aos saltos dentro
dos velhos e duros Land-Rover, a comer pó e com os nervos à flor da pele, a
ouvir insultos, apupos e muitas vezes até o arremeço contra nós de tudo o que
lhes vinha à mão, porque aquela gente não entendia ou fazia que não entendia
que estávamos ali a cumprir ordens vindas do próprio governo.
Miminhos
verbais como “cabrões” ou “filhos de puta” eram o nosso dia-a-dia. Em muitas
dessas entregas houve desacatos a sério que originaram tomadas de posição de
força e de retaliação para repor a ordem, resultando em confrontos físicos
ferozes e feridos em ambas as partes. Foi num desses "apertos", na cidade de Ponte de Sor junto ao
tribunal que um identificado e na altura muito conhecido activista, mesmo à minha frente e olhos nos olhos, me vociferou furioso:
-
Quando a gente deixar de trabalhar vais comer a espingarda, o bastão, o jipe e
os cães-polícias, porco fascista…
Nem
sequer foram as palavras insultuosas que ele proferiu que mais me impressionaram, mas sim a
forma enviesada como me olhou, aquele ódio puro a faiscar-lhe nos olhos.
Nós
estávamos instruídos, mais que recomendados e fortemente mentalizados para
nunca ripostarmos individualmente. Ninguém abria a boca, fazia qualquer gesto
agressivo ou tomava qualquer atitude, fosse ela qual fosse, em que
circunstância fosse, sem para isso ter sido dada ordem verbal por quem detinha o comando
da força no local.
Aqueles
insultos deviam ser considerados como sendo dirigidos à Guarda no seu todo e
não individualmente a cada um dos guardas que ali estavam no desempenho de uma
missão como qualquer outra. Por isso nenhuma reação a título individual seria
tolerada. A nossa função primeira era evitar conflitos e não provocá-los, muito
menos ser parte neles.
Foram
assim “do caraças” muitos dias, semanas e meses. No meu espírito a perturbação instalou-se
algumas vezes com tão estranha contradição. Apenas meia dúzia de semanas atrás era eu insultado e enxovalhado
pelos meus chefes por eles acharem que e era um comunista infiltrado, e, agora ali, no justo e cabal desempenho de funções estritamente profissionais continuar a ser insultado e de novo enxovalhado, desta vez pelos comunistas e por ser guarda.
Vai lá vai. Dasss... Preso por ter cão e preso por o não ter!
No
meu espírito começou contudo a despertar, perante estas cenas de duro
antagonismo, alguma compreensão pelos motivos que originaram tudo aquilo que me
tinham feito na instrução. Tentava, no fundo, encontrar algo concreto que me
levasse a ser capaz de perceber melhor os excessos de que fui vítima, conotando
estes insultos verbais diários entre comunistas e guardas nas entregas das
herdades com o tal comportamento verbal agressivo usado pelos meus chefes
contra a minha pessoa por me acharem suspeito de ser um daqueles desordeiros.
A
aversão mútua entre as duas partes era quase palpável e não sei bem qual delas
detestava mais a outra. Ambas alimentavam um antagonismo visceral
entre elas. E não podia ser de outra maneira perante quadros de tão manifesta
agressividade e violência verbal como aquele que eu acabara de protagonizar sob
o olhar de ódio do irado ativista político que, cara a cara e mesmo em frente de
um tribunal de comarca não se intimidou com o aparato policial de viaturas
em grande número, pessoal armado com bastões e espingardas, e ainda também quinze ou vinte binómios homem-cão,
afim de dissuadir qualquer tentativa de invasão daquela Domus Iustitae onde decorria um julgamento contra trabalhadores desordeiros que
tinham sido detidos por injúrias e agressões na entrega de uma herdade.
-
Quando a gente deixar de trabalhar, vais comer a espingarda, o bastão, o jipe e
os cães-polícias porco fascista…
José
Coelho in Histórias do Cota