sexta-feira, 17 de março de 2017

Coisas q'escrevi...

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Preso por ter cão, preso por o não ter


A colocação no Posto de Portalegre deu-me finalmente a oportunidade de conhecer ao vivo e em direto a tão falada reforma agrária. Aquela – em meu entender – deplorável asneira político-partidária resultante da Revolução de Abril que opunha ferozmente os donos das herdades àqueles que irregularmente as tinham invadido e ocupado.

No meio da contenda para mediar o conflito – nem sempre de forma isenta – cabia à Guarda estar presente a fim de evitar desacatos, proteger os técnicos do Ministério da Agricultura ou seus delegados, e, em suma, fazer cumprir a Lei, mesmo que algumas vezes inevitavelmente tivesse que usar a força para o conseguir.

Para tal missão eram diariamente escalados vários militares de cada Posto da área para formar uma secção ou um pelotão de manutenção da ordem pública, variando o dispositivo em função da probabilidade prevista de risco e de conflito no local programado.

Eram dias muito atribulados a percorrer caminhos de terra batida aos saltos dentro dos velhos e duros Land-Rover, a comer pó e com os nervos à flor da pele, a ouvir insultos, apupos e muitas vezes até o arremeço contra nós de tudo o que lhes vinha à mão, porque aquela gente não entendia ou fazia que não entendia que estávamos ali a cumprir ordens vindas do próprio governo.

Miminhos verbais como “cabrões” ou “filhos de puta” eram o nosso dia-a-dia. Em muitas dessas entregas houve desacatos a sério que originaram tomadas de posição de força e de retaliação para repor a ordem, resultando em confrontos físicos ferozes e feridos em ambas as partes. Foi num desses "apertos", na cidade de Ponte de Sor junto ao tribunal que um identificado e na altura muito conhecido activista, mesmo à minha frente e olhos nos olhos, me vociferou furioso:

- Quando a gente deixar de trabalhar vais comer a espingarda, o bastão, o jipe e os cães-polícias, porco fascista…

Nem sequer foram as palavras insultuosas que ele proferiu que mais me impressionaram, mas sim a forma enviesada como me olhou, aquele ódio puro a faiscar-lhe nos olhos.

Nós estávamos instruídos, mais que recomendados e fortemente mentalizados para nunca ripostarmos individualmente. Ninguém abria a boca, fazia qualquer gesto agressivo ou tomava qualquer atitude, fosse ela qual fosse, em que circunstância fosse, sem para isso ter sido dada ordem verbal por quem detinha o comando da força no local.

Aqueles insultos deviam ser considerados como sendo dirigidos à Guarda no seu todo e não individualmente a cada um dos guardas que ali estavam no desempenho de uma missão como qualquer outra. Por isso nenhuma reação a título individual seria tolerada. A nossa função primeira era evitar conflitos e não provocá-los, muito menos ser parte neles.

Foram assim “do caraças” muitos dias, semanas e meses.  No meu espírito a perturbação instalou-se algumas vezes com tão estranha contradição. Apenas meia dúzia de semanas atrás era eu insultado e enxovalhado pelos meus chefes por eles acharem que e era um comunista infiltrado, e, agora ali, no justo e cabal desempenho de funções estritamente profissionais continuar a ser insultado e de novo enxovalhado, desta vez pelos comunistas e por ser guarda. Vai lá vai. Dasss... Preso por ter cão e preso por o não ter!

 No meu espírito começou contudo a despertar, perante estas cenas de duro antagonismo, alguma compreensão pelos motivos que originaram tudo aquilo que me tinham feito na instrução. Tentava, no fundo, encontrar algo concreto que me levasse a ser capaz de perceber melhor os excessos de que fui vítima, conotando estes insultos verbais diários entre comunistas e guardas nas entregas das herdades com o tal comportamento verbal agressivo usado pelos meus chefes contra a minha pessoa por me acharem suspeito de ser um daqueles desordeiros.

A aversão mútua entre as duas partes era quase palpável e não sei bem qual delas detestava mais a outra. Ambas alimentavam um antagonismo visceral entre elas. E não podia ser de outra maneira perante quadros de tão manifesta agressividade e violência verbal como aquele que eu acabara de protagonizar sob o olhar de ódio do irado ativista político que, cara a cara e mesmo em frente de um tribunal de comarca não se intimidou com o aparato policial de viaturas em grande número, pessoal armado com bastões e espingardas, e ainda também quinze ou vinte binómios homem-cão, afim de dissuadir qualquer tentativa de invasão daquela Domus Iustitae onde decorria um julgamento contra trabalhadores desordeiros que tinham sido detidos por injúrias e agressões na entrega de uma herdade.

- Quando a gente deixar de trabalhar, vais comer a espingarda, o bastão, o jipe e os cães-polícias porco fascista…


José Coelho in Histórias do Cota