segunda-feira, 20 de março de 2017

Coisas q'escrevi...

Patrulheiros (da minha colecção de bonecos da Guarda)  
Foto by José Coelho


Camaradagem



Passou o verão de 1979. Certo dia e já entrado o Outono saí de patrulha aos campos com um dos tais velhos e ponderados guardas como comandante. Já nos conhecíamos na altura bastante bem porquanto e mais que uma vez lhe tinha respondido com seriedade e honestidade às suas dúvidas sobre os motivos que levavam a que eu fosse considerado o “inimigo público nº 1” e que estavam na origem tantos excessos verbais.

Era aquele guarda um homem bom. De Alpalhão. Infelizmente já não está entre nós. Não tenho dúvidas que ele acreditava de facto em mim e no que eu lhe ia revelando com sincera verdade sobre as minhas actividades no tal sindicato dos trabalhadores rurais onde nunca fora secretario, onde apenas e sem qualquer conotação política nada mais fizera do que ajudar na escrita em virtude de os dirigentes eleitos serem todos analfabetos. E, sim senhor, tinha-os de facto auxiliado em tudo quanto pude até também por uma questão de humanidade, uma vez que, conhecendo-os de toda a minha vida, via neles a mesmíssima humilde e honrada condição do meu próprio pai.

Desde quando – desabafava eu com ele - ajudar é crime? E mais! Ao aderirem a um sindicato para defenderem os seus interesses, aqueles honestos trabalhadores não estavam a fazer nada de mal. Porque não haveria eu de os ajudar se tinha todo o meu tempo livre por não conseguir arranjar qualquer trabalho? Não duvidava que fora a má fé e malvadez de algumas pessoas que eu inocentemente julgara minhas amigas quem criou à minha volta todos esses boatos. Por acaso nunca fui militante de nenhum partido político. Mas, se o fosse, só estava a usufruir do mesmo direito constitucionalmente reconhecido àqueles que neles militam.

Contei-lhe ainda que acompanhava quase sempre o tal senhor doutor da alfândega conforme era acusado porque ele me pedia que lhe indicasse os locais onde ia fazer as sessões de esclarecimento. Porque não? Havia nisso qualquer irregularidade? Que ele falava muito, de facto, no MDP/CDE, nos direitos dos trabalhadores e na necessidade de se unirem em sindicatos e por isso tinha sido ele o grande impulsionador e responsável de muitas dessas actividades na minha freguesia.

Porém uma coisa era acompanhá-lo e ser amigo dele, outra coisa era que eu percebesse fosse o que fosse da sua política. Daquela ou de qualquer outra. Que formação tinha eu? Muitas vezes me apercebi que algumas das pessoas que trabalhavam sob a sua chefia não simpatizavam nada com as coisas que ele afirmava mas arreganhavam sempre os dentes para ele em falsos e alarves sorrisos porque não tinham tomates para contradizer os seus argumentos.

“Senhor Doutor assim, senhor doutor assado”, mas sabe Deus o que lhes ia no íntimo. Só que ele sabia disso porque de ingénuo não tinha nada. Como não podiam tocar-lhe porque não tinham ousadia para tanto, viraram a sua sanha, cobardia e falta de frontalidade contra mim, peixe miúdo, a quem facilmente transformaram em bode expiatório.

Naquela tarde, enquanto percorríamos calmamente o nosso longo giro de patrulha com oito horas de duração contei-lhe ainda sem qualquer receio aquela que foi, para mim, a melhor medida que o “tal” doutor tinha trazido a dezenas de velhotes da minha freguesia. Tinha sido por essa altura publicada uma nova lei que obrigava todas as entidades patronais a inscreverem os seus trabalhadores na segurança social a fim de descontarem para as suas reformas, usufruírem dos abonos de família dos filhos menores aqueles que ainda os tinham, lei essa onde havia ainda também uma cláusula extraordinariamente importante que dizia mais ou menos que:

Qualquer indivíduo que tivesse trabalhado mais de cinco anos para um patrão e do qual tivesse saído por motivo de velhice há também menos de cinco anos, tinha direito a ser por ali reformado, bastando para tanto preencher uns formulários que se iam buscar à Caixa de Previdência de Portalegre na Avenida Frei Amador Arrais hoje designada Segurança Social e já sedeada junto ao estádio, do outro lado da cidade, arranjar três testemunhas de maior idade (mais de 21 anos) que atestassem por sua honra terem conhecimento que aquele indivíduo trabalhara para a tal entidade patronal durante mais de cinco anos, e, automaticamente essa entidade patronal era obrigada a reembolsar a Caixa dos descontos retroativos, podendo logo a seguir o trabalhador que tivesse mais de 65 anos de idade requerer a sua reforma, preenchendo para isso um requerimento em impresso próprio.

Não sei dizer que Lei foi aquela. É de finais de 1974 ou princípios de 1975 e deduzo hoje que terá sido talvez a “mãe” da Lei que tornou definitivamente obrigatórios os descontos para a Segurança Social e que por essa altura terá entrado definitivamente em vigor. Mas não tenho qualquer dúvida em afirmar que sei, quase com absoluta certeza, que foi esse o alegado “grave crime” que eu cometi à luz do entendimento mal-intencionado de muitos “amigos” meus e que tantos dissabores me causou.

Contar-vos-ei mais pormenores, no próximo relato. Até lá…


José Coelho in Histórias do Cota