Instruendos de 1986 comigo, já então sargento-adjunto e instrutor.
De costas, no centro da imagem
As teias do Mal
Nos
anos de 1978, 1979 e 1980 decorreu, de forma muito conflituosa entre as partes,
a devolução de parcelas de herdades ou mesmo herdades inteiras aos seus
legítimos proprietários após a correção legislativa da Assembleia da República
que estipulou, por um lado, as áreas a manter sob ocupação e domínio das
inúmeras Cooperativas Agrícolas que então se formaram, e, por outro, as áreas a
devolver a quem de direito.
No
olho do furacão, a Guarda Nacional Republicana era, no terreno, o garante do
integral cumprimento da Lei que tinha forçosamente de ser respeitada pelas
partes interessadas, mas cujo cumprimento originava por toda a zona do conflito
graves situações de confrontos físicos e verbais causadores de um terrível
clima de hostilidades mútuas e muito complicadas.
Não
foi uma época fácil para ninguém. Houve excessos, falta de fair play,
agressividades evitáveis e comportamentos reprováveis de todas as partes.
Todas, sem exceção, cometeram muitos e grandes erros.
Foi
pois nesse clima de desconfiança e suspeição que eu e os meus camaradas de
alistamento fomos recebidos e tratados pelos nossos instrutores durante quase
todo o alistamento, principalmente pelo senhor oficial e pelo senhor sargento,
respetivamente comandante do pelotão e adjunto, já que os cabos, honra lhes
seja feita, eram duas excelentes pessoas que tentavam sempre e como podiam
“amortizar” junto de nós os efeitos das “bocas” dos outros dois graduados que
não nos poupavam a provocações tendenciosas e muitas vezes a raiarem o insulto.
Para
a maior percentagem de efetivo nos quadros da Guarda do Alentejo, nós, instruendos,
éramos potenciais suspeitos de sermos comunas. “Comuna” era um termo
depreciativo usado para com os militantes do PCP. E ser comuna em 1979 no entender
de quase todas as patentes da guarda por estas bandas era quase comparado a um cadastrado
criminoso. Não havia nada mais grave. Como a maior parte dos meus camaradas
eram oriundos da zona vermelha do conflito – Ponte de Sor, Montargil, Cano,
Elvas, Monforte, Estremoz, Galveias – se não fossem comunistas, seriam com
certeza filhos, netos, sobrinhos ou primos deles. E por isso considerados um
potencial perigo de infeção e contágio às puríssimas hostes do antigamente.
Ai
de mim que, para mal dos meus pecados e sem que nunca de tal coisa me tivesse apercebido,
tinha, no entender destes senhores, um enormíssimo “cadastro” comuno-criminal.
Comecei
a dar-me conta dessa realidade num fim-de-semana quando vim a casa e fui
abordado pelo hoje já falecido comerciante, amigo e senhor Joaquim Ventura da
Loja Grande, o qual, muito em segredo, me chamou à parte e a sós para me avisar:
- Zé Manel toma muito cuidado porque “eles” querem correr contigo da GNR. Disse-me o Cabo de Santo António no dia que esteve aqui a fazer-me perguntas sobre ti, sobre a tua família e sobre o que tu andaste por aí a fazer na política com o doutor Teixeira Alves da alfândega.
- Obrigadinho por me ter avisado, Senhor Joaquim. Agradeci surpreso e reconhecido.
Foi
exatamente nesse dia que comecei a entender melhor o porquê de o senhor oficial
comandante do pelotão ser tão rude e agressivo comigo cada vez que se me
dirigia verbalmente:
- Levante-me esse punho à altura do ombro do camarada da frente quando marcha senhor Coelho… Ou você só gosta de levantar o punho nos comícios?
Ou então:
- Estique-me o braço ó senhor secretário do sindicato da Beirã…
Vieram
bater a boa porta! Longe de me atemorizar porque nunca na minha vida fui
medroso, aquilo encheu-me de uma justa e combativa raiva. Em vez de me acagaçar
como eles pretendiam, ergui bem alto a cabeça e a duras penas fiz orelhas
moucas às piadas tendenciosas que visavam tão só e apenas humilhar-me, com o
manhoso intuito de eu não aguentar a pressão e desistir do curso, o que lhes
daria imenso jeito. Dessa forma eu sairia a pedido e não por indevida expulsão.
Tais
procedimentos eram reveladores do fraco conceito de democracia e de justiça que
aqueles senhores possuíam apesar de serem graduados. Fazendo um uso ilegal das
suas competências de chefia e comando agiam de forma abusiva e criminosa
espezinhando a minha dignidade com deliberada intenção, com resquícios de
perversidade e sem me conhecerem minimamente, influenciados apenas por boatos
tão infundados quanto falsos que nunca conseguiram provar exactamente por nunca
ter existido qualquer irregularidade no meu comportamento cívico.
Não
tardou que nos fins de semana seguintes outros dois vizinhos e grandes amigos
meus me avisassem também das “démarches” do incisivo cabo de Santo António das
Areias que não desistia de escarafunchar informações a meu respeito e da minha
família na busca mal-intencionada de consegur provas suficientes para que fosse
contra mim aberto o processo de dispensa definitiva da Guarda pelo grave e
hediondo crime da prática do comunismo.
Derrubaram
os capitães de Abril o sucessor de Salazar que tinha horror aos comunistas, mas
deixaram tantos outros e medíocres “salazares” por esse país fora e semelhantes
a estes que me trataram abaixo de cão sem qualquer encargo de consciência ou de
humanidade.
O
primeiro desses vizinhos sondados pelo distinto cabo e que logo a seguir veio
ter comigo, foi o ti Jaquim Farinha. Grande amigo de uma vida inteira que me
viu nascer, crescer e ser homem, conhecendo-me por isso mesmo muito bem. Confidenciou-me muito apreensivo e pediu-me que disso guardasse absoluto segredo:
- Zé, o cabo (…) esteve na lá Sociedade a fazer-me muitas perguntas sobre ti. Toma cuidado que eles andam a ver se te fazem a folha!
- Eu já sei, ti Jaquim. Respondi-lhe com manifesta gratidão.
- O senhor Joaquim Ventura também já foi interrogado por esse senhor a meu respeito. Não há-de ser nada, porque eu nada fiz de errado, fique tranquilo. Obrigado pela sua amizade e consideração.
As
coisas ainda não se ficariam, contudo, por ali. A maquiavélica máquina trituradora
do meu bom nome e caráter tinha sido posta em marcha e a insana busca continuou…
José
Coelho in Histórias do Cota