sexta-feira, 3 de março de 2017

Coisas q'escrevi...

Instruendos de 1986 comigo, já então sargento-adjunto e instrutor.
De costas, no centro da imagem


As teias do Mal


Nos anos de 1978, 1979 e 1980 decorreu, de forma muito conflituosa entre as partes, a devolução de parcelas de herdades ou mesmo herdades inteiras aos seus legítimos proprietários após a correção legislativa da Assembleia da República que estipulou, por um lado, as áreas a manter sob ocupação e domínio das inúmeras Cooperativas Agrícolas que então se formaram, e, por outro, as áreas a devolver a quem de direito.

No olho do furacão, a Guarda Nacional Republicana era, no terreno, o garante do integral cumprimento da Lei que tinha forçosamente de ser respeitada pelas partes interessadas, mas cujo cumprimento originava por toda a zona do conflito graves situações de confrontos físicos e verbais causadores de um terrível clima de hostilidades mútuas e muito complicadas.

Não foi uma época fácil para ninguém. Houve excessos, falta de fair play, agressividades evitáveis e comportamentos reprováveis de todas as partes. Todas, sem exceção, cometeram muitos e grandes erros.

Foi pois nesse clima de desconfiança e suspeição que eu e os meus camaradas de alistamento fomos recebidos e tratados pelos nossos instrutores durante quase todo o alistamento, principalmente pelo senhor oficial e pelo senhor sargento, respetivamente comandante do pelotão e adjunto, já que os cabos, honra lhes seja feita, eram duas excelentes pessoas que tentavam sempre e como podiam “amortizar” junto de nós os efeitos das “bocas” dos outros dois graduados que não nos poupavam a provocações tendenciosas e muitas vezes a raiarem o insulto.

Para a maior percentagem de efetivo nos quadros da Guarda do Alentejo, nós, instruendos, éramos potenciais suspeitos de sermos comunas. “Comuna” era um termo depreciativo usado para com os militantes do PCP. E ser comuna em 1979 no entender de quase todas as patentes da guarda por estas bandas era quase comparado a um cadastrado criminoso. Não havia nada mais grave. Como a maior parte dos meus camaradas eram oriundos da zona vermelha do conflito – Ponte de Sor, Montargil, Cano, Elvas, Monforte, Estremoz, Galveias – se não fossem comunistas, seriam com certeza filhos, netos, sobrinhos ou primos deles. E por isso considerados um potencial perigo de infeção e contágio às puríssimas hostes do antigamente.

Ai de mim que, para mal dos meus pecados e sem que nunca de tal coisa me tivesse apercebido, tinha, no entender destes senhores, um enormíssimo “cadastro” comuno-criminal.

Comecei a dar-me conta dessa realidade num fim-de-semana quando vim a casa e fui abordado pelo hoje já falecido comerciante, amigo e senhor Joaquim Ventura da Loja Grande, o qual, muito em segredo, me chamou à parte e a sós para me avisar:

- Zé Manel toma muito cuidado porque “eles” querem correr contigo da GNR. Disse-me o Cabo de Santo António no dia que esteve aqui a fazer-me perguntas sobre ti, sobre a tua família e sobre o que tu andaste por aí a fazer na política com o doutor Teixeira Alves da alfândega.

- Obrigadinho por me ter avisado, Senhor Joaquim. Agradeci surpreso e reconhecido.

Foi exatamente nesse dia que comecei a entender melhor o porquê de o senhor oficial comandante do pelotão ser tão rude e agressivo comigo cada vez que se me dirigia verbalmente:

- Levante-me esse punho à altura do ombro do camarada da frente quando marcha senhor Coelho… Ou você só gosta de levantar o punho nos comícios?

Ou então:

- Estique-me o braço ó senhor secretário do sindicato da Beirã…

Vieram bater a boa porta! Longe de me atemorizar porque nunca na minha vida fui medroso, aquilo encheu-me de uma justa e combativa raiva. Em vez de me acagaçar como eles pretendiam, ergui bem alto a cabeça e a duras penas fiz orelhas moucas às piadas tendenciosas que visavam tão só e apenas humilhar-me, com o manhoso intuito de eu não aguentar a pressão e desistir do curso, o que lhes daria imenso jeito. Dessa forma eu sairia a pedido e não por indevida expulsão.

Tais procedimentos eram reveladores do fraco conceito de democracia e de justiça que aqueles senhores possuíam apesar de serem graduados. Fazendo um uso ilegal das suas competências de chefia e comando agiam de forma abusiva e criminosa espezinhando a minha dignidade com deliberada intenção, com resquícios de perversidade e sem me conhecerem minimamente, influenciados apenas por boatos tão infundados quanto falsos que nunca conseguiram provar exactamente por nunca ter existido qualquer irregularidade no meu comportamento cívico.

Não tardou que nos fins de semana seguintes outros dois vizinhos e grandes amigos meus me avisassem também das “démarches” do incisivo cabo de Santo António das Areias que não desistia de escarafunchar informações a meu respeito e da minha família na busca mal-intencionada de consegur provas suficientes para que fosse contra mim aberto o processo de dispensa definitiva da Guarda pelo grave e hediondo crime da prática do comunismo.

Derrubaram os capitães de Abril o sucessor de Salazar que tinha horror aos comunistas, mas deixaram tantos outros e medíocres “salazares” por esse país fora e semelhantes a estes que me trataram abaixo de cão sem qualquer encargo de consciência ou de humanidade.

O primeiro desses vizinhos sondados pelo distinto cabo e que logo a seguir veio ter comigo, foi o ti Jaquim Farinha. Grande amigo de uma vida inteira que me viu nascer, crescer e ser homem, conhecendo-me por isso mesmo muito bem. Confidenciou-me muito apreensivo e pediu-me que disso guardasse absoluto segredo:

- Zé, o cabo (…) esteve na lá Sociedade a fazer-me muitas perguntas sobre ti. Toma cuidado que eles andam a ver se te fazem a folha!

- Eu já sei, ti Jaquim. Respondi-lhe com manifesta gratidão.

- O senhor Joaquim Ventura também já foi interrogado por esse senhor a meu respeito. Não há-de ser nada, porque eu nada fiz de errado, fique tranquilo. Obrigado pela sua amizade e consideração.

As coisas ainda não se ficariam, contudo, por ali. A maquiavélica máquina trituradora do meu bom nome e caráter tinha sido posta em marcha e a insana busca continuou…


José Coelho in Histórias do Cota