Relíquias com dezenas de anos
Assumir a verdade sem medo
Continuei
o meu relato ao atento camarada sentados agora os dois a descansar as pernas
debaixo de um velho e frondoso castanheiro na serra da Penha, a olhar lá em baixo como a bonita cidade de Portalegre se espreguiça longamente pelas encostas da serra que lhe fica sobranceira.
Como
deve calcular – prossegui – sendo a minha freguesia eminentemente rural, pese
embora nesse tempo com a estação da CP a funcionar ainda em pleno, houvesse uma
boa parte de pessoas que sabiam ler e escrever, a grande maioria dos seus
habitantes era composta por trabalhadores e famílias rurais completamente analfabetos.
Ainda
hoje acredito sinceramente que o doutor Teixeira Alves agia daquela maneira mais por solidariedade
humana perante a miséria que via por aquelas esquecidas aldeias raianas, do que
por mero interesse político de onde pudesse tirar chorudos dividendos políticos. Que
influência poderiam ter mais cinquenta ou menos cinquenta votos para ele? Ridículo
esse raciocínio, acho eu. Em meu entender, ele era uma pessoa excepcional.
Bondoso, atento, interessado, culto, disponível, humano e muito, muito
solidário. Julgo que sou a pessoa que melhor o conheceu por estas
bandas porquanto convivi e conversei muito com ele nas suas horas livres, durante meses. Foi com ele que aprendi o significado real da solidariedade e do
quanto um homem doutorado é capaz de ser mais interessado, mais simples e humilde do que
muito boa gente que conheço e que, por terem um bacharelato qualquer, já se julgam
superiores a todos os outros.
Mas continuando o assunto das reformas dos velhos trabalhadores rurais, mal a tal Lei foi publicada no Diário da República logo o doutor me “requisitou” novamente para fazermos o “levantamento” de quantas pessoas haveria naquelas condições para que nós as pudéssemos ajudar. Dito e feito. Nem pensei duas vezes. Ajudar quem necessita de ajuda sempre foi um dos meus passatempos prediletos. E além disso,
conhecia-os um a um. Sabia onde moravam, sabia mesmo que muitos desses idosos
viviam agora apenas do pouco que tinham conseguido amealhar na sua sacrificada
vida de trabalho e de uma mísera “reforma da casa do povo” que nem dava para
pagarem a renda, para além do auxílio dos filhos, aqueles que os tinham
por perto.
E
contactámo-los um a um. E informámo-los também um a um dos passos necessários.
E fomos depois a seguir pedir orientação e ajuda a um grande homem da direção
da Caixa – de quem não vou citar o nome – que sempre se disponibilizou amavelmente
para ajudar fosse no que fosse. A “cor” política dele? Não sei. Nunca soube. O que sabia era que na Beirã, nos Barretos e
por todos os lugarejos em redor, havia por certo mais de duas dezenas de idosos
que tinham trabalhado em determinada e muito conhecida herdade, não apenas
cinco, mas, muitos deles, mais de cinquenta anos. A sua vida inteira. E viviam agora
assim, velhos, incapazes e quase sem nada, por falta do apoio a que tinham
direito depois de uma vida inteira de trabalho e sacrifícios.
Confesso
que foi uma das obras que ajudei a levar por diante que mais me orgulha. E
talvez por pensar nela, suportei tudo aquilo que quiseram de mim dizer. Se “ser
comunista” é lutar pelo bem-estar de quem nada tem, pois bem, eu sou sim um
grandessíssimo e convicto comunista e jamais deixaria de fazer o mesmo cada vez que fosse necessário.
Qual
foi então a "parte" que mais me “incriminou” naquele processo?
Várias.
Para não dizer todas.
Primeiro,
fui eu que andei de porta em porta a informar os velhotes daquilo a que tinham
direito e o que precisavam fazer. Depois, fui eu que fui a Portalegre com o
doutor buscar os formulários necessários e aprender a preenchê-los. Depois, fui eu ainda que tive que convencer muitas das
testemunhas a atestarem por sua honra que tinham visto aqueles idosos a
trabalhar naquele local durante mais de cinco anos. Para não falar dos medos
que eu tive que ajudar a dissipar porque “ era o senhor fulano tal, que depois
se podia ofender quando soubesse…” ou então porque “o filho, irmão ou primo trabalhavam
ainda lá e podiam vir a ter problemas...”
Um
a um, lá consegui convencê-los que hoje era por aqueles, mas amanhã seria
decerto por eles próprios. E numa atitude de total confiança mostrando-lhes a
minha tranquilidade de consciência e ausência de qualquer receio, a primeira
assinatura de muitos desses formulários era a minha. Muitas dessas testemunhas,
tenho a certeza, só perderam o receio de assinar, depois de verem lá o meu nome
também escarrapachado.
Como
consequência desse meu empenho que, volto a repetir, nada, mas absolutamente
nada teve a ver com partidarismos políticos, soubemos, pouco depois, que todos
tinham sido aceites e deferidos, originando à tal entidade patronal ter que
pagar um reembolso na ordem dos seiscentos contos, quantia algo elevada mas
acumulada por serem de facto muitos os seus ex-trabalhadores com o direito
reconhecido pela nova Lei.
Houve
mesmo quem tivesse imensa pena do coitado! Ter que reembolsar seiscentos contos à Caixa de Previdência de Portalegre para que um punhado de bons servidores seus que durante a sua vida
inteira trabalharam para ele, pudessem ter uma velhice mais digna. Logo agora que ele tinha acabado de
gastar dois mil e tal contos num automóvelzeco Lamborguini topo de gama… Que
chatice!
O
meu camarada guarda alpalhoeiro nem movia os olhos, de tão absorto e interessado
que estava na minha narrativa.
E
eu continuei:
Assim
que terminou a fase do reembolso pela entidade patronal, demos início à fase de
requerer as respetivas pensões de reforma. E, como não podia deixar de ser, lá
tive que, outra vez, ser eu a “descalçar a bota” aos velhotes. Sempre orientado
pelo tal ilustre amigo e senhor da Administração da Caixa de Previdência, preenchi os
requerimentos a quem me o solicitava e devo esclarecer que todo este processo
não durou mais de três ou quatro meses. Que fique bem claro que não aceitei de ninguém qualquer recompensa pela minha ajuda, pese embora fossem muitos a quererem gratificar-me das mais variadas formas.
Passado
muito pouco tempo foram todos os requerimentos deferidos sem qualquer
entrave e logo a seguir foram informados os interessados dos respetivos
montantes de reforma que lhes seriam atribuídos a partir da data em que tinham
completado os 65 anos, assim como o valor acumulado que em alguns casos era,
naquele tempo e para eles, uma pequenina fortuna. Sessenta contos uns, oitenta contos
outros, enfim, conforme era a soma dos meses em retroatividade assim eram os
montantes acumulados e a receber. Vi muitas lágrimas furtivas e de incredulidade
em muitos olhos, vi também a mais profunda gratidão em muitos outros, mas, sobretudo, adquiri
um bom punhado de excelentes amigos.
Só
não me apercebi nessa altura das inimizades ocultas que tudo aquilo desencadeou sobre mim
porque nunca foram suficientemente homens para mostrarem o rosto, preferindo à
boa maneira dos cobardes atacar pelas costas e por métodos sujos. E só não me
apercebi mesmo de nada disso porque como já escrevi em relatos anteriores, pouco tempo depois fui-me embora para
longe para as Minas da Panasqueira
– de onde nunca deveria ter saído – afastando-me durante cinco anos quase
definitivamente da aldeia e esquecendo completamente todas essas coisas até
ingressar na Guarda…
José
Coelho in Histórias do Cota