quinta-feira, 23 de março de 2017

Coisas q'escrevi...

Relíquias com dezenas de anos



Assumir a verdade sem medo



Continuei o meu relato ao atento camarada sentados agora os dois a descansar as pernas debaixo de um velho e frondoso castanheiro na serra da Penha, a olhar lá em baixo como a bonita cidade de Portalegre se espreguiça longamente pelas encostas da serra que lhe fica sobranceira.

Como deve calcular – prossegui – sendo a minha freguesia eminentemente rural, pese embora nesse tempo com a estação da CP a funcionar ainda em pleno, houvesse uma boa parte de pessoas que sabiam ler e escrever, a grande maioria dos seus habitantes era composta por trabalhadores e famílias rurais completamente analfabetos.

Ainda hoje acredito sinceramente que o doutor Teixeira Alves agia daquela maneira mais por solidariedade humana perante a miséria que via por aquelas esquecidas aldeias raianas, do que por mero interesse político de onde pudesse tirar chorudos dividendos políticos. Que influência poderiam ter mais cinquenta ou menos cinquenta votos para ele? Ridículo esse raciocínio, acho eu. Em meu entender, ele era uma pessoa excepcional. Bondoso, atento, interessado, culto, disponível, humano e muito, muito solidário. Julgo que sou a pessoa que melhor o conheceu por estas bandas porquanto convivi e conversei muito com ele nas suas horas livres, durante meses. Foi com ele que aprendi o significado real da solidariedade e do quanto um homem doutorado é capaz de ser mais interessado, mais simples e humilde do que muito boa gente que conheço e que, por terem um bacharelato qualquer, já se julgam superiores a todos os outros.

Mas continuando o assunto das reformas dos velhos trabalhadores rurais, mal a tal Lei foi publicada no Diário da República logo o doutor me “requisitou” novamente para fazermos o “levantamento” de quantas pessoas haveria naquelas condições para que nós as pudéssemos ajudar. Dito e feito. Nem pensei duas vezes. Ajudar quem necessita de ajuda sempre foi um dos meus passatempos prediletos. E além disso, conhecia-os um a um. Sabia onde moravam, sabia mesmo que muitos desses idosos viviam agora apenas do pouco que tinham conseguido amealhar na sua sacrificada vida de trabalho e de uma mísera “reforma da casa do povo” que nem dava para pagarem a renda, para além do auxílio dos filhos, aqueles que os tinham por perto.

E contactámo-los um a um. E informámo-los também um a um dos passos necessários. E fomos depois a seguir pedir orientação e ajuda a um grande homem da direção da Caixa – de quem não vou citar o nome – que sempre se disponibilizou amavelmente para ajudar fosse no que fosse. A “cor” política dele? Não sei. Nunca soube.  O que sabia era que na Beirã, nos Barretos e por todos os lugarejos em redor, havia por certo mais de duas dezenas de idosos que tinham trabalhado em determinada e muito conhecida herdade, não apenas cinco, mas, muitos deles, mais de cinquenta anos. A sua vida inteira. E viviam agora assim, velhos, incapazes e quase sem nada, por falta do apoio a que tinham direito depois de uma vida inteira de trabalho e sacrifícios.

Confesso que foi uma das obras que ajudei a levar por diante que mais me orgulha. E talvez por pensar nela, suportei tudo aquilo que quiseram de mim dizer. Se “ser comunista” é lutar pelo bem-estar de quem nada tem, pois bem, eu sou sim um grandessíssimo e convicto comunista e jamais deixaria de fazer o mesmo cada vez que fosse necessário.

Qual foi então a "parte" que mais me “incriminou” naquele processo?

Várias. Para não dizer todas.

Primeiro, fui eu que andei de porta em porta a informar os velhotes daquilo a que tinham direito e o que precisavam fazer. Depois, fui eu que fui a Portalegre com o doutor buscar os formulários necessários e aprender a preenchê-los. Depois, fui eu ainda que tive que convencer muitas das testemunhas a atestarem por sua honra que tinham visto aqueles idosos a trabalhar naquele local durante mais de cinco anos. Para não falar dos medos que eu tive que ajudar a dissipar porque “ era o senhor fulano tal, que depois se podia ofender quando soubesse…” ou então porque “o filho, irmão ou primo trabalhavam ainda lá e podiam vir a ter problemas...”

Um a um, lá consegui convencê-los que hoje era por aqueles, mas amanhã seria decerto por eles próprios. E numa atitude de total confiança mostrando-lhes a minha tranquilidade de consciência e ausência de qualquer receio, a primeira assinatura de muitos desses formulários era a minha. Muitas dessas testemunhas, tenho a certeza, só perderam o receio de assinar, depois de verem lá o meu nome também escarrapachado.

Como consequência desse meu empenho que, volto a repetir, nada, mas absolutamente nada teve a ver com partidarismos políticos, soubemos, pouco depois, que todos tinham sido aceites e deferidos, originando à tal entidade patronal ter que pagar um reembolso na ordem dos seiscentos contos, quantia algo elevada mas acumulada por serem de facto muitos os seus ex-trabalhadores com o direito reconhecido pela nova Lei.

Houve mesmo quem tivesse imensa pena do coitado! Ter que reembolsar seiscentos contos à Caixa de Previdência de Portalegre para que um punhado de bons servidores seus que durante a sua vida inteira trabalharam para ele, pudessem ter uma velhice mais digna. Logo agora que ele tinha acabado de gastar dois mil e tal contos num automóvelzeco Lamborguini topo de gama… Que chatice!

O meu camarada guarda alpalhoeiro nem movia os olhos, de tão absorto e interessado que estava na minha narrativa.

E eu continuei:

Assim que terminou a fase do reembolso pela entidade patronal, demos início à fase de requerer as respetivas pensões de reforma. E, como não podia deixar de ser, lá tive que, outra vez, ser eu a “descalçar a bota” aos velhotes. Sempre orientado pelo tal ilustre amigo e senhor da Administração da Caixa de Previdência, preenchi os requerimentos a quem me o solicitava e devo esclarecer que todo este processo não durou mais de três ou quatro meses. Que fique bem claro que não aceitei de ninguém qualquer recompensa pela minha ajuda, pese embora fossem muitos a quererem gratificar-me das mais variadas formas.

Passado muito pouco tempo foram todos os requerimentos deferidos sem qualquer entrave e logo a seguir foram informados os interessados dos respetivos montantes de reforma que lhes seriam atribuídos a partir da data em que tinham completado os 65 anos, assim como o valor acumulado que em alguns casos era, naquele tempo e para eles, uma pequenina fortuna. Sessenta contos uns, oitenta contos outros, enfim, conforme era a soma dos meses em retroatividade assim eram os montantes acumulados e a receber. Vi muitas lágrimas furtivas e de incredulidade em muitos olhos, vi também a mais profunda gratidão em muitos outros, mas, sobretudo, adquiri um bom punhado de excelentes amigos.

Só não me apercebi nessa altura das inimizades ocultas que tudo aquilo desencadeou sobre mim porque nunca foram suficientemente homens para mostrarem o rosto, preferindo à boa maneira dos cobardes atacar pelas costas e por métodos sujos. E só não me apercebi mesmo de nada disso porque como já escrevi em relatos anteriores, pouco tempo depois fui-me embora para longe para as Minas da Panasqueira – de onde nunca deveria ter saído – afastando-me durante cinco anos quase definitivamente da aldeia e esquecendo completamente todas essas coisas até ingressar na Guarda…


José Coelho in Histórias do Cota