Esperteza saloia
Insatisfeitos
com os fracos resultados no “complot” montado para “desmascarar” os meus
“crimes” e provavelmente porque o “material” recolhido não era suficiente nem consistente,
foi contactado desta vez de uma forma bem mais subtil e manhosa um outro
vizinho íntimo da minha casa e família. O falecido vizinho Francisco Dias que
morava paredes meias connosco. De tal modo éramos chegados que foi a minha mãe
quem assistiu aos partos da esposa dele no nascimento dos seus filhos e foi a
esposa dele quem assistiu aos da minha mãe no meu nascimento e nos das minhas
irmãs mais novas. Não havia por isso na Beirã quem pudesse conhecer-me melhor.
E
qual foi desta vez a brilhante “estratégia” inventada por aqueles Sherlock’s
Holmes aprendizes?
O
meu vizinho Chico Dias era vendedor ambulante. Tinha uma tenda de comes e
bebes, farturas ou massa frita, petiscos, café e vinhos, os quais vendia de
mercado em mercado, de feira em feira, por todo o distrito. Era por isso
conhecido e amigo de muitos guardas de toda esta zona. Ao passar por Portalegre
num desses dias a tratar de assuntos do seu interesse nas proximidades do
quartel, calhou logo ser visto, abordado e convidado para lá ir petiscar com os
guardas e beber uns copos.
Estrategicamente
– ou não – estava presente nesse improvisado “lanche”, o meu – pouco – excelentíssimo
comandante de pelotão. Embebedaram deliberadamente o vizinho Chico Dias com a
manha e o intuito de lhe “sacarem” alguma informação “cabeluda” que pudesse ser
depois usada contra mim. Contou-mo ele pessoalmente, tim-tim por tim-tim, conforme agora o descrevo.
Enganaram-se
uma vez mais.
Primeiro
porque na verdade não havia mesmo nada para ser revelado que me pudesse
comprometer. Depois, porque o vizinho Francisco conhecia-me, como já disse,
desde que nasci, e podia, com quase tanta propriedade como o meu pai falar
sobre mim, com seguro e exato conhecimento de causa. E sentindo-se a ser “apalpado” pelo astuto tenente e guardas, porque de parvo o
Chico Dias não tinha nada, disse-lhes exatamente o contrário do que eles
queriam ouvir:
-
O Zé Coelho? Ohhhh… Bom cachopinho senhor tenente. Muito bom cachopinho mesmo,
pode ter a certeza! É boa gente. Vi-o nascer e conheço o que ali está. Educado,
respeitador e inteligente. E a família é tudo gente de trabalho e cumpridora. Vai
ter ali um bom guarda, até aposto!
Rimo-nos
divertidos os dois quando ele me contou tudo isto em sua casa poucos dias
depois de ter acontecido:
-
Ó Zé, pá… Os gajos querem-te pôr mesmo a mexer, pá… Se visses o que o gajo me
disse de ti, pá!
(O
ti Chico falava mesmo assim, ó pá isto, ó pá aquilo).
E
continuou satisfeito da sua proeza:
-
Mas eu desmenti-o logo, pá! Disse-lhe logo que aquilo era tudo mentira, pá… Mas
tu põe-te a pau com eles.
Era uma perseguição orquestrada, odiosa, feroz, mal-intencionada e
tremendamente injusta. Mas eu continuava de pé. A lutar com as armas que tinha.
A minha idoneidade e o empenho feroz que me punha a estudar até altas horas da
madrugada sozinho na sala de aulas para conseguir arrancar notas acima dos 17
valores nos testes semanais que lhes espetava no focinho com íntimo regozijo,
conseguindo com o meu esforço ser, até àquela data e sem que eles o pudessem
evitar – passe a imodéstia – o primeiro classificado do curso...
José
Coelho in Histórias do Cota