Quantas vezes pensamos na nossa reforma? Não seguramente por pressa de ser velhos, mas porque achamos que merecemos lá chegar para desfrutar um pouquinho melhor uma vida de trabalho e lutas.
Quantas vezes imaginamos as mil e uma coisas que iremos fazer, longe de todos os compromissos e obrigações?
O tempo é, indiscutivelmente, o melhor de todos os mestres.
Quando somos crianças ansiamos ser adultos. Quando somos adultos queremos ser experientes para conseguirmos ascender nas nossas carreiras. E depois, quando atingimos experiência e maturidade começamos a ambicionar a reforma para um regresso tranquilo às nossas raízes.
Foi exatamente o que me sucedeu a mim.
Trabalhei desde os onze anos, lutei com unhas e dentes para as alcançar as minhas metas, defendi-me de agressões e armadilhas que me estenderam sem nunca fazer uso de qualquer violência porque não ser igual a quem me queria mal. Contentei-me em esfregar apenas na cara dessas pessoas ruins a minha competência e sucesso.
E não, não é vaidade. É orgulho. Muito orgulho da capacidade e resiliência que me ajudou a conseguir singrar na vida, construir o meu futuro e da minha família e chegar à idade de concretizar o último sonho, contra ventos e marés.
A minha mais que merecida reforma.
Estranhamente – ou talvez não – quando alcancei este sonho, fartei-me dele em três tempos.
Os primeiros meses foram de facto puro deleite. Deitava-me à hora que me apetecia sem preocupações para o dia seguinte, levantava-me quando me dava na gana sem olhar sequer para o relógio que durante décadas me acordava às seis e meia da manhã.
Apesar de nunca dormir as manhãs na cama pelo hábito de levantar cedo durante décadas, tomava o pequeno almoço e corria para o quintal onde erva nenhuma tinha autorização sequer de assomar à face da terra, quanto mais de crescer. Só faltava andar de lupa a espreitá-las para as arrancar no momento seguinte.
Depressa percebi contudo o ridículo do meu comportamento. Não se pode impedir a erva de nascer ou os campos de florir. E aos poucos, os dias começaram a ser enormes, enfadonhos.
- Rais'parta a reforma - resmungava de mim para mim. Quem dera ter de levantar-me cedo de novo para ir trabalhar!
Vá lá a gente entender-se! Nunca estamos satisfeitos com o que temos…
No monótono entardecer da minha vida rodeia-me o ensurdecedor silêncio em que tudo à minha volta se transformou. Não há um grito de gaiato a brincar pelas ruas, ou mãe alguma a bradar pelo seu Zéi como a minha bradava por mim.
Emudeceram também os apitos dos comboios nos agora inúteis carris estendidos por dezenas de quilómetros da a Beirã à Torre das Vargens ou até Valência de Alcântara no outro lado da fronteira.
Como pode o mundo dar cambalhotas tão grandes?
Recebi dos meus pais e avós um mundo que não era perfeito, de todo. Mas não tenho a menor dúvida que vou deixar aos meus filhos e netas outro bem mais complicado.
Quando era miúdo soube sempre o que me esperava quando crescesse. Estava escrito nas estrelas desde o dia que nascíamos.
Trabalhar, trabalhar, trabalhar...
No que houvesse, quisesse ou pudesse.
Padeiro, sapateiro, cavador, pastor, pedreiro ou carpinteiro, ferroviário, carteiro…
Que foi feito de todos esses ofícios?
E o que dizem hoje as estrelas aos nossos filhos e netos?
Cursos. Licenciaturas. Mestrados. Doutoramentos.
Para que querem eles os cursos e licenciaturas se a maior parte ao terminá-los ficam com o canudo debaixo do braço por não haver vagas e emprego nesses cursos em que se formaram?
E por isso têm de ir trabalhar para o que mais depressa lhes aparece, se aparece? Quantos desses jovens vemos nas caixas dos hipermercados, nos call centers das grandes empresas de comunicação ou outras?
Claro que não é nenhuma desonra trabalhar lá, mas para ocupar essas vagas não havia necessidade de os pais gastarem fortunas para financiar os cursos.
E por falta de oportunidades, muitos optam por emigrar em busca de soluções para as suas vidas, ainda que longe da terra e família. E a maior parte nunca mais vai voltar.
Os sinais são cada dia mais inquietantes. A escalada global da violência bélica não augura nada de bom e receio por isso que o futuro das novas gerações seja muito diverso daquele que me esperava a mim ao nascer.
E pela lógica não deveria ser assim.
Tenho plena consciência de como alcancei os meus objetivos, sem ajudas de ninguém. Que consegui tudo aquilo a que me propus apenas com o meu esforço à custa de muito trabalho, empenho e noites sem dormir.
Mas o mundo está a ficar tão complexo e perigoso que no lugar de um promissor céu azul de oportunidades, a geração atual enfrenta um horizonte carregado de negras e ameaçadoras nuvens.