O tempo! Ah! O tempo… Às vezes nem parece o mesmo de quando nasci. Naquela época não havia casa, casebre ou sócha que não contivesse uma família lá dentro. Fosse uma pessoa para onde quer que fosse, da Beirã ao Cabeço de Seixo, da Beirã à Atalaia, da Beirã às Amendoeiras, da Beirã à Retorta, por todos os lugares dos quatro pontos cardeais havia gente a morar, a trabalhar, a viver.
Por toda a parte se ouviam vozes
de gente a conversar, pastores a assobiar aos gados, searas a ondular nas
tapadas, pomares e abundantes hortas a bordejarem os ribeiros e regatos.
Chamava-se a tudo isso...
Vida!
Que pura e simplesmente deixou de existir.
Bastaram cinquenta anos.
Tudo foi varrido destas
paragens como se um vento ruim por aqui tivesse passado e com ele levado tudo.
Não sei se não foi mesmo.
Esse vento ruim para mim usa um
nome fino e sonante. Apelidam-no de progresso. Eu não acho que ele
nos tivesse trazido algo assim de tão bom. Senão vejamos. Que progresso extingue
tudo aquilo em que toca, desertifica freguesias, concelhos, regiões inteiras?
Que progresso mata
os usos e costumes de um povo maioritariamente rural de norte a sul, a sua
agricultura, o seu comércio e serviços, obrigando ao êxodo em massa dessas
populações para os grandes centros urbanos abandonando as suas raízes?
Que progresso sobrecarrega
o povo de impostos, taxas e sobretaxas para satisfazer os mercados, cujos
responsáveis visam apenas o lucro e a ganância de outros, promovendo a
corrupção e o compadrio numa total ausência de decoro?
E, como se isso não fosse já por
si só suficientemente censurável, ter ainda como consequência direta a asfixia
e morte de quase todos os pequenos negócios que serviam e facilitavam a vida às
populações das aldeias que teimaram cá ficar e delas não quiseram arredar pé?
Que progresso extingue
em vez de modernizar e tornar rentáveis, ramais ferroviários inteiros de norte
a sul, com tudo o que deles dependia – postos de trabalho, economias locais e
mobilidade das populações – desrespeitando sem contemplações esse património
construído à custa do erário público que serviu o país durante décadas?
Que progresso permite
que se cometam tantos atropelos aos direitos mais elementares das pessoas,
sucessivamente decididos nos gabinetes climatizados da capital por decisores
políticos sem a mínima sensibilidade social, cada um mais hostil que o
anterior?
Progresso é só
planear autoestradas, pontes e outras obras faraónicas?
E nós provincianos refilamos, mas
continuamos a metê-los nos seus confortáveis gabinetes a cada quatro
anos.
Não sei se é triste sina nossa,
ingenuidade ou conformismo, mas sei que passados cinquenta anos de democráticas
decisões, mais de metade do nosso país está vazio e sem quaisquer perspectivas
de futuro, mormente o "meu" Distrito de Portalegre que é campeão
nacional da indiferença política coletiva, da desertificação e do
envelhecimento populacional, onde nasci, cresci, trabalhei a vida toda e vivo
ainda.
O tempo não volta!
Mas às vezes penso que muitas
coisas o tempo repete. Por exemplo, no "tempo da outra
senhora" dizia-se que a política vigente era a "dos três
éfes". Fátima Futebol e Festas. Curiosamente, no tempo da "senhora
atual", esse espírito mantém-se.
Basta perceber as multidões que
continuam a afluir à Cova da Iria, as paixões assoberbadas e sempre ao rubro no
Futebol, e, como não, o quanto a malta continua a gostar de Festas.
Sejam romarias, feiras medievais,
ou campanhas eleitorais.
Assumo sem qualquer hesitação que
também vou a Fátima. Ao Futebol já não tanto e às Festas menos ainda, mas do
que gosto mesmo e pratico diariamente desde que meus pais e avós me os
ensinaram, ensinei depois aos filhos e ensino agora às netas, são os valores e
princípios fundamentais que ninguém deveria deixar de praticar nunca.
O respeito, a dignidade no trato,
a honestidade nas palavras e nas atitudes, a honradez nos compromissos, e,
acima de todos eles, uma irrepreensível integridade de carácter.
Resumindo o sentir da minha gente
do campo maioritariamente analfabeta, vou descrever o que inúmeras
vezes ouvi das suas honradas bocas:
Uma pessoa pode não ter mais nada
na vida, mas há uma coisa que nunca pode deixar de ter. A vergonha na
cara.
É infelizmente vulgar a total
ausência de valores e princípios em muitas pessoas à nossa volta, com
particular gravidade em figuras públicas que deveriam ser exemplo para todos
nós, mas que pelo contrário são com demasiada frequência a nossa coletiva humilhação.
Por isso me revejo muito mais
no tempo em que fui moço apesar das tremendas dificuldades de então, do
que no atual com todas as facilidades existentes.
Disse.
José Coelho