"Escrevo
para que outros filhos e outros pais não se esqueçam de que tudo passa, menos o
amor. No coração de um pai ficam para sempre gravados todos os gestos de amor.
No coração dos filhos também.
Nem
todos temos a experiência de sermos pais, mas todos temos a experiência de
sermos filhos. Mesmo aqueles que perderam os pais demasiado cedo ou nunca
chegaram a conhecê-los, e até aqueles que foram abandonados ou mal amados sabem
a importância dum pai. Na ausência ou em presença, pai é pai. A sua marca é
indelével e a sua influência (ou a sua carência) estende-se pela vida fora.
Um
verdadeiro pai ajuda a crescer, educa, estrutura o carácter, ensina coisas
banais e especiais, tem paciência para ouvir, enche de confiança, mostra mundos
novos, consola na tristeza, alegra-se com as alegrias, leva pela mão, protege,
sabe sempre como espantar os medos e convocar a coragem, conta histórias
antigas, fala dos avós e de outros tempos, diz coisas que mais ninguém diz e
faz coisas que mais ninguém faz. Um bom pai faz perguntas directas, não evita
as conversas difíceis, diz o que tem a dizer mesmo quando isso lhe custa e, tal
como os bons mestres, espera que os filhos percebam mais à frente aquilo que
nem sempre conseguem compreender ou aceitar de imediato.
Quem
teve a sorte de ser filho de um bom pai sabe que é um homem capaz de tudo isto
e muito mais. Capaz de ralhar e perder a cabeça, também, mas com a mesma
verdade com que abraça e pega ao colo. Um homem aprende a ser pai com o seu
primeiro filho, mas não se relaciona do mesmo modo com todos. Pode ter os
mesmos critérios e tentar ser igualmente justo, mas se for realmente um pai
bom, sabe que tem que ser único e especial para cada filho. E procura tratar
cada um de forma diferente, justamente por serem todos iguais no seu coração. A
igualdade nas famílias, como fora delas, mede-se pela forma diferenciada como
cada um é tratado. À medida de cada um. Nem mais, nem menos.
Não
ter pai ou não guardar a memória de um pai é um drama. Uma ferida que nunca
sara e pode ficar aberta para sempre. Atravessar uma vida inteira sem a sua
presença, ou perdê-lo demasiado cedo, é uma grande tristeza. Um pai faz uma
falta terrível. Para tudo. Para dar colo, para ensinar a andar e até a nadar,
mas também para orientar e dar exemplo. Para que os filhos possam aprender com
ele a lidar com as conquistas, mas também a viver a dor e os sofrimentos. A mãe
e outras pessoas igualmente queridas podem estar presentes nos momentos
marcantes ou inaugurais dos primeiros passos, das primeiras braçadas ou das
primeiras pedaladas numa bicicleta sem rodinhas, mas não é a mesma coisa. O
orgulho de um pai, quando sente no filho a confiança para caminhar, para nadar
ou para desatar a andar sozinho de bicicleta é inigualável. Todos os filhos
pequenos mereciam ter um pai para estes e outros momentos de viragem, mas muito
mais importante que tê-lo para as coisas inaugurais, é contar com ele para as
gargalhadas e as lágrimas, sabendo-o próximo todos os dias, durante longos
anos.
Infelizmente
nenhum pai dura para sempre. Nunca saberemos quando será o seu último dia, mas
esse dia chega muitas vezes quando menos esperamos. Acordamos com pai e
adormecemos órfãos. Assim mesmo. E no momento em que o perdemos, percebemos que
não estávamos preparados. Por mais velho que seja, parece que nunca é
suficientemente velho para partir. Egoisticamente apetece que fique connosco
muito mais tempo, até para podermos ainda reparar alguma coisa que, porventura,
precise de ser reparada ou feita de novo. Ser pai e ser filho implica perdoar e
ser perdoado. Exige aceitação e perdão, pois nenhum pai é perfeito e nenhum
filho é sem mancha. E o tempo é, como dizia Yourcenar, um grande escultor. O
tempo serve para nos afastarmos e voltarmos a aproximar, porque há realmente um
tempo para tudo. E é esse tempo que apetece aproveitar, mas nem sempre nos é
dado. Ou não é dado a todos na mesma medida.
Uma
das grandes marcas que ficam para a vida são as memórias das conversas e dos
abraços de pai, seja quando os pais são de abraçar com naturalidade, seja
quando nem sequer têm facilidade para o fazer. Se o abraço demora ou custa a
chegar, sabe ainda melhor. Mas tão vital como receber abraços é (re)aprender a
dá-los. Na idade adulta a vida torna-se tão acelerada e tão exigente, que
demasiadas vezes esses abraços ficam por dar. E muitas palavras ficam por
dizer, também. Quando pais e filhos deixam de morar juntos, tudo se complica.
As visitas nem sempre são regulares, a distância parece que aumenta (e em
certos casos aumenta mesmo, de forma radical) e tudo é feito numa vertigem.
Acontece
que os pais não são eternos. Não duram para sempre, embora nos custe acreditar
nessa realidade. Se tivemos a sorte de ter uma vida longa com pais presentes e
próximos, eles chegam a parecer-nos eternos. Mas não é verdade. Os pais morrem
e nós nunca saberemos o dia. Essa é a nossa única certeza. Tarde ou cedo,
quando acontece sentimos que o mundo se torna um lugar estranho. Ao perdermos o
pai, perdemos protecção. Mesmo quando o pai não era de proteger os seus filhos ou,
pelo contrário, os enchia de preocupações, a sensação é sempre de perda
irreparável. Se era um bom pai, perdemos o nosso escudo protector, a nossa
grande referência, o nosso maior e mais forte abraço. Se o pai não era como
gostávamos que fosse, também perdemos a ilusão de um dia podermos chegar a um
ponto de equilíbrio ou até de reconciliação (nem que fosse uma reconciliação
com o pai real, deixando para trás o pai ideal ou idealizado).
Porque
os pais morrem e nunca saberemos o dia, nem a hora, importa ter muito presente
esta verdade. Faz diferença vivermos com esta certeza, para não nos acontecer
deixar alguma coisa por fazer ou por dizer. O meu pai morreu na semana passada,
quando absolutamente ninguém esperava. Moramos juntos nos últimos anos e vivemos
todos na mesma casa durante o tempo suficiente para que nada de essencial
ficasse por dizer ou fazer, mas mesmo assim a perda é irremediável. Por isso
escrevo para que outros filhos e outros pais não se esqueçam de que tudo passa,
menos o amor. No coração de um pai ficam para sempre gravados todos os gestos
de amor, mesmo os mais ínfimos. No coração dos filhos também".
Laurinda
Alves in Observador
Foto
Ana Batista