quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Testemunhos inquestionáveis de uma vida feliz

a) Ruínas da Caseta do Maxial do lado direito do Ramal de Cáceres

b) Cerejeira em flor na horta da Caseta do Maxial

Ainda é verão pelo menos por mais uns dias. E como o tempo já não é o que era, vai vir ainda com toda a certeza mais calor por outubro dentro, quiçá até depois dos Santos. A vindima está feita porque as elevadas temperaturas queimaram as folhas das parreiras e cozeram as uvas em crescimento e maturação, deixando-as de tal jeito que 90% foram diretamente das parreiras para o contentor do lixo. Figos já não temos de nossa produção porque a figueira pingo de mel que durante seis décadas deu camadas atrás de camadas e cada uma mais doce e suculenta que a anterior, teve de ser abatida por estar a forçar a parede que divide o nosso quintal da Tapada da Rabela e já estava a rebentar.

Esta é a melhor época do ano em questão de fartura pelas hortas e pomares que infelizmente já rareiam. Seguramente as poucas árvores de fruto que têm resistindo ao tempo e ao abandono irão sucumbir definitivamente com estes tórridos verões cada ano mais agressivos, e, consequentemente, à falta de humidade no ar e nos solos que lhes matem a sede.

Esta época é também aquela em que eu me desculpo a mim próprio conjeturando que o doce da fruta não é tão prejudicial à saúde como o do açúcar refinado. Como diz o ditado, morra Marta, morra farta! Por isso, cada vez que passo por qualquer árvore com frutos maduros, em vez de três, colho seis! Até os sacanas dos figos-chumbos cheios de incómodos picos são de comer e chorar por mais.

Viver numa aldeia deste Alentejo profundo que só é visitado pela malta do poder de 4 em 4 anos - vocês sabem porquê - tem muitas limitações e inconvenientes, mas tem também - por enquanto - algumas vantagens, como, por exemplo, a de se poder comer ainda assim a fruta diretamente da árvore sem qualquer perigo de contaminação por químicos. Quando muito, haverá a possibilidade de o fruto conter algum "marisco" hospedeiro que também precisa de se alimentar, porque, tal como nós, também tem direito à vida.

Mas como dizia o meu avô Zé Lourenço, "mal do bicho que vai para a barriga de outro".

Caminho muito pelos campos ao redor da minha Beirã e sei exatamente onde ficam as hortas de antigamente e onde continuam a lutar valentemente pela sua sobrevivência muitas velhinhas árvores de fruto plantadas pela mão de gente boa que conheci e frequentemente recordo com saudade. Uma dessas pessoas foi o meu Pai, exímio hortelão e tudo o que plantava se reproduzia fartamente.

No Cancho de Ruivo há ainda duas ou três pereiras e macieiras, parreiras moscatel e figueiras de várias espécies que são mais velhas do que eu. Lá continuam a lutar contra as silvas que as tentam sufocar e a dar frutos, ano após ano. Pelas margens do ribeiro da Cavalinha já não se vislumbra a terra das hortas cobertas de mat, mas em muitos locais ainda podem ver-se videiras a treparem em busca dos raios do sol, pereiras, figueiras, nogueiras e macieiras.

Junto às Casetas da via-férrea do velhinho Ramal de Cáceres, como por exemplo na do Maxial que já nem telhado tem, lá continuam as cerejeiras de pé, a dar flor e fruto cada primavera, marmeleiros e pereiras, mesmo enleadas nas silvas assassinas. Mais admirável ainda é a resiliência de algumas flores plantadas pelas mãos das mulheres, esposas e mães d'outrora, pois até essas continuam a vencer o tempo e a florir primavera após primavera, recusando-se a morrer.

Cercada de roseiras em flor de várias espécies, a esventrada casa que foi morada de quem cuidava diariamente da manutenção da linha ferroviária, transforma-se num tão admirável como bucólico quadro quando exibe simultaneamente as ruínas da casa em contraste absolutamente oposto ao da vida e beleza de todas aquelas roseiras floridas que lutam pela vida e exalam o seu inigualável perfume, completamente indiferentes ao abandono a que foram votadas.

Mas não é só no Maxial que se desenrola esse milagre da vida. Também no antigo jardim da casa da minha avó Amélia junto à passagem de nível da Cavalinha as açucenas que ela plantou há cinquenta anos continuam a nascer, a crescer e a florir a cada primavera. Vou lá sempre visitá-las. Acaricio-as com os olhos e com as mãos como se nelas permanecessem ainda as santas mãos de quem as plantou e eu amava tanto.

Como é possível que uma planta aparentemente tão frágil não morra sem ser regada sob tantos verões inclementes, no meio do matagal que cerca quase sempre a casa? Já por várias vezes falámos, eu e a minha companheira, em trazermos uns tubérculos para replantar num canteiro do nosso quintal. Mas ainda nunca o fizemos porque no nosso íntimo sabemos que não seria a mesma coisa. Aquelas é que são obra das amadas mãos da Avó Amélia da Conceição de Brito.

Quaisquer outras seriam apenas uma imitação sem sentido e sem o mesmo valor sentimental. É naturalmente uma fantasia nascida da saudade imensa que muitas vezes me atormenta o espírito, mas simbolicamente, as suas resilientes açucenas são a visita possível que ela me vem fazer cada ano.

Mas...

A melancolia tomou de novo as rédeas dos meus sentires!

Desculpem.

José Coelho - Texto e fotos