Ainda é verão pelo menos por mais uns dias. E como o tempo já não é o que era, vai vir ainda com toda a certeza mais calor por outubro dentro, quiçá até depois dos Santos. A vindima está feita porque as elevadas temperaturas queimaram as folhas das parreiras e cozeram as uvas em crescimento e maturação, deixando-as de tal jeito que 90% foram diretamente das parreiras para o contentor do lixo. Figos já não temos de nossa produção porque a figueira pingo de mel que durante seis décadas deu camadas atrás de camadas e cada uma mais doce e suculenta que a anterior, teve de ser abatida por estar a forçar a parede que divide o nosso quintal da Tapada da Rabela e já estava a rebentar.
Esta é a melhor época do ano em
questão de fartura pelas hortas e pomares que infelizmente já rareiam.
Seguramente as poucas árvores de fruto que têm resistindo ao tempo e ao
abandono irão sucumbir definitivamente com estes tórridos verões cada ano mais agressivos,
e, consequentemente, à falta de humidade no ar e nos solos que lhes matem a sede.
Esta época é também aquela em que
eu me desculpo a mim próprio conjeturando
que o doce da fruta não é tão prejudicial à saúde como o do açúcar refinado.
Como diz o ditado, morra Marta, morra farta! Por isso, cada vez que passo por
qualquer árvore com frutos maduros, em vez de três, colho seis! Até os sacanas
dos figos-chumbos cheios de incómodos picos são de comer e chorar por mais.
Viver numa aldeia deste Alentejo profundo
que só é visitado pela malta do poder de 4 em 4 anos - vocês sabem porquê - tem
muitas limitações e inconvenientes, mas tem também - por enquanto - algumas
vantagens, como, por exemplo, a de se poder comer ainda assim a fruta
diretamente da árvore sem qualquer perigo de contaminação por químicos. Quando
muito, haverá a possibilidade de o fruto conter algum "marisco"
hospedeiro que também precisa de se alimentar, porque, tal como nós, também tem
direito à vida.
Mas como dizia o meu avô Zé
Lourenço, "mal do bicho que vai para a barriga de outro".
Caminho muito pelos campos ao
redor da minha Beirã e sei exatamente onde ficam as hortas de antigamente e
onde continuam a lutar valentemente pela sua sobrevivência muitas velhinhas
árvores de fruto plantadas pela mão de gente boa que conheci e frequentemente
recordo com saudade. Uma dessas pessoas foi o meu Pai, exímio hortelão e tudo o
que plantava se reproduzia fartamente.
No Cancho de Ruivo há ainda duas
ou três pereiras e macieiras, parreiras moscatel e figueiras de várias espécies
que são mais velhas do que eu. Lá continuam a lutar contra as silvas que as
tentam sufocar e a dar frutos, ano após ano. Pelas margens do ribeiro da
Cavalinha já não se vislumbra a terra das hortas cobertas de mat, mas em muitos
locais ainda podem ver-se videiras a treparem em busca dos raios do sol,
pereiras, figueiras, nogueiras e macieiras.
Junto às Casetas da via-férrea do
velhinho Ramal de Cáceres, como por exemplo na do Maxial que já nem telhado
tem, lá continuam as cerejeiras de pé, a dar flor e fruto cada primavera,
marmeleiros e pereiras, mesmo enleadas nas silvas assassinas. Mais admirável
ainda é a resiliência de algumas flores plantadas pelas mãos das mulheres,
esposas e mães d'outrora, pois até essas continuam a vencer o tempo e a florir
primavera após primavera, recusando-se a morrer.
Cercada de roseiras em flor de
várias espécies, a esventrada casa que foi morada de quem cuidava diariamente
da manutenção da linha ferroviária, transforma-se num tão admirável como
bucólico quadro quando exibe simultaneamente as ruínas da casa em contraste
absolutamente oposto ao da vida e beleza de todas aquelas roseiras floridas que
lutam pela vida e exalam o seu inigualável perfume, completamente indiferentes
ao abandono a que foram votadas.
Mas não é só no Maxial que se
desenrola esse milagre da vida. Também no antigo jardim da casa da minha avó
Amélia junto à passagem de nível da Cavalinha as açucenas que ela plantou há
cinquenta anos continuam a nascer, a crescer e a florir a cada primavera. Vou lá
sempre visitá-las. Acaricio-as com os olhos e com as mãos como se nelas
permanecessem ainda as santas mãos de quem as plantou e eu amava tanto.
Como é possível que uma planta
aparentemente tão frágil não morra sem ser regada sob tantos verões inclementes,
no meio do matagal que cerca quase sempre a casa? Já por várias vezes falámos,
eu e a minha companheira, em trazermos uns tubérculos para replantar num
canteiro do nosso quintal. Mas ainda nunca o fizemos porque no nosso íntimo
sabemos que não seria a mesma coisa. Aquelas é que são obra das amadas mãos da Avó
Amélia da Conceição de Brito.
Quaisquer outras seriam apenas
uma imitação sem sentido e sem o mesmo valor sentimental. É naturalmente uma
fantasia nascida da saudade imensa que muitas vezes me atormenta o espírito,
mas simbolicamente, as suas resilientes açucenas são a visita possível que ela me
vem fazer cada ano.
Mas...
A melancolia tomou de novo as rédeas dos meus sentires!
Desculpem.
José Coelho - Texto e fotos