António Coelho - O melhor Pai do mundo
Passo muitas horas rodeado pelo silêncio deste bairro cá no alto, o mais alto da aldeia e naquela que foi, por decisão do meu pai há mais de setenta anos, a primeira casa da rua que mais tarde haveria de se denominar de Fernando Namora.
Foi ele quem, sozinho e à força dos seus braços, arrancou e rachou os calhaus disformes que haveria de moldar a guilho e a martelão, cortando na medida exacta cada bloco de pedra que depois o Mestre Caldeira dos Barretos – pedreiro de fama na época – haveria de utilizar para construir todas as paredes.
Quatro pequenas divisões apenas. Uma cozinha uma sala e dois quartos, num dos quais nasci eu e depois as minhas duas irmãs mais novas Maria da Luz e Joaquina Maria. A Adelina dos Santos e mais velha dos quatro, nasceu ainda noutra casa onde moravam os nossos pais enquanto esta era construída.
Estar em casa é para mim um duplo aconchego. Pouca gente compreende isso mas o importante é o que eu sinto e não o que os outros pensam. Este sossego que me rodeia é iluminado por uma vida inteira de muitas e boas memórias, qual quadro que o seu pintor enriqueceu com as cores que elegeu da paleta de tintas.
É tão fácil imaginar o bulício da casa cheia de outrora. O riso melodioso e sempre pronto da minha mãe, o tom grave e tranquilo da voz do meu pai. O calor do lume na lareira, o cheiro do jantar a apurar na sertã, a chuva a tamborilar nas telhas mouriscas, o vento a rugir lá fora mas nós aconchegados e quentinhos em seu redor. Já no verão, depois da ceia, o costume era irmos todos para o fresquinho da rua sentados em bancos de pinho ou cadeirinhas de bunho para cavaquear com os vizinhos em convívio de quase família.
Depois…
Depois o tempo passou. Um a um, primeiro a mana Adelina, depois eu, a seguir a Luz e por fim a Joaquina, voámos deste acolhedor ninho para aquele outro que nos aventurámos construir. E vieram os nossos filhos que os avós adoravam e carinhosamente aconchegavam como nos tinham aconchegado a nós, quiçá até mais do que a nós. Os seus primeiros risos, os seus primeiros passos, o balbuciar das suas primeiras palavras tudo isso se repetiu sob o humilde teto desta casinha tão pequenina no tamanho, mas tão grande nos afetos.
Mais tarde fui eleito seu novo proprietário por expresso empenho do meu saudoso pai. Foi ele quem decidiu que seria para mim. Nunca, jamais, em tempo algum, eu havia pensado nisso. Era impensável que eles iriam faltar um dia. Inconscientemente acreditamos que isso só irá acontecer ao fim de muitos anos quando até já nós formos também velhotes como eles. Andava inclusivamente, a ver uma casa para comprar no bairro novo à entrada da aldeia.
Ao aperceber-se, perguntou-me:
Que andas para aqui a fazer em meio de semana, filho?
E eu disse-lhe.
Resposta imediata:
- Não tens de procurar casa nenhuma porque a tua casa é esta. Contestou peremptório.
Foi exatamente assim. Sem nunca termos falado em tal coisa ele já tinha até calculado o valor que eu teria de dar a cada uma das minhas irmãs, descontada a parte que me cabia a mim. Apenas uma condição irrevogável. Ele e a mãe Florinda habitariam aqui conosco enquanto fossem vivos.
Longe de ser um problema, tê-los comigo era uma bênção.
Sem nunca ter pensado nisso, aceitei. Ou melhor, obedeci! As minhas irmãs e cunhados também acataram sem qualquer reparo e sem a menor discordância a vontade do querido patriarca. Nesse tempo o respeito era prática corrente e comum. Em menos de um ai tratou-se da papelada, acertou-se o pagamento e a casa mudou do António Coelho pai, para o José Coelho filho.
E nela passaram a acomodar-se três ramos de uma só árvore. A matriarca Avó Amélia mãe da minha mãe, que rodeada de amor e carinho conosco viveu os últimos 10 dos 93 anos com que nos deixou. Os patriarcas António Coelho e Florinda Lourenço, coproprietários perpétuos, e nós, os novos proprietários.
Tive de ampliar o espaço de modo a ficarmos melhor acomodados por sermos tantos, mas no projeto de ampliação fiz questão que as quatro divisões originais da casa mãe ficassem intactas dentro da que cresceu para os lados e para cima.
Assim as paredes que me viram nascer continuam até hoje no seu lugar. E as pedras que o meu pai moldou pela força dos seus braços ficaram onde ele quis que ficassem. São sagradas para mim. Foi entre elas que ele nos deixou e eu lhe cerrei as pálpebras ainda quentes numa triste madrugada de janeiro. No quarto que sempre foi o seu, na sua cama, na casa que construiu e nunca deixou de lhe pertencer.
Por essa e por muitas outras razões sinto pela minha Toca dos Coelhos o mesmo amor e reverência que provavelmente muitos devotos sentem quando entram no santuário que evoca a divindade da sua devoção. Enquanto eu viver aqui se manterão guardadas essas ternas memórias dos meus pais, dos meus avós, das minhas irmãs, dos meus filhos e já também agora das minhas lindas netas…