quinta-feira, 5 de setembro de 2024

A paz que existe no silêncio


Sou, sempre fui, um pouco dado à solidão, talvez em consequência da uma precária meninice onde quase tudo faltava menos o amor familiar, sem direito à adolescência que foi substituída pela promoção precoce a adulto com onze anos, idade em que comecei a trabalhar. Assalariado pelo meu pai ao mês, com um ordenado de cento e cinquenta escudos. Cinco escudos por dia, sem direito a qualquer folga mensal porque as ovelhas que guardava também precisavam de comer aos domingos e porque cada centavo ganho era necessário para ajudar no sustento da casa e não havia margem para mais nada.

Nunca tive brinquedos nem aprendi sequer a andar de bicicleta porque nunca tive nenhuma. E ninguém alguma vez me ouviu queixar, assim como nunca tive inveja ou me senti menos gente do que aqueles meus amigos a quem não faltava quase nada por terem pais Ferroviários, Guardas Fiscais, da Pide, Funcionários da alfândega, ou Despachantes oficiais com ordenados certos que nada tinham a ver com as precárias jornas dos trabalhadores do campo como nós.
Um dia ou uma semana de chuva sem se poder ir trabalhar, era um dia ou uma semana sem se receber depois a jorna. Mas a sopa e o pão tinham que se por na mesa para alimentar as famílias quer chovesse ou fizesse sol. Valia-nos a confiança dos merceeiros de então – em paz descansem – que nunca negavam o avio semanal às donas de casa porque sabiam que logo que recebessem o pagamento do seu trabalho iriam pagar o que lhes deviam.
Distante já desses tempos, a minha vida foi felizmente evoluindo para melhor, mas não sem muita luta, pois foi bastante dura e difícil de vencer até aqui chegar. Tinha onze anos como já escrevi quando o meu pai me promoveu a adulto. Nunca fiquei com um só centavo sequer, do meu modesto ordenado. Em vez de fazer como faziam alguns dos meus amigos que ficavam com tudo o que ganhavam, eu entregava-o feliz à minha mãe porque sabia que era uma ajuda, ainda que pequenina, para as inúmeras necessidades do governo da casa onde éramos seis à mesa a todas as refeições, quando não aparecia mais alguma visita.
Ajudá-la foi sempre a minha prioridade. Ela gostou sempre muito de mim, mas eu gostei também, toda a minha vida, muito dela.
Era absolutamente recíproco.
Cedo percebi, sem que ninguém tivesse de mo explicar, que não podia ir com os rapazes da minha idade para as farras e petiscos aos domingos ou dias de festa. Talvez por isso mesmo muito cedo o fascínio pelos livros tomou conta de mim. Primeiro as histórias infantis assim que aprendi a ler, depois já rapazote as aventuras dos cow-boys como o Billy the Kid que alguns amigos me emprestavam, e por fim, milagre dos milagres, da Biblioteca Itinerante Calouste Gulbenkian que começou a vir todos os meses à Beirã e emprestava logo três livros de cada vez, à escolha do leitor.
Aí começaram as minhas mais emocionantes aventuras. Vinte mil léguas submarinas, Viagem ao centro da terra, A Ilha misteriosa do Júlio Verne, com centenas de páginas, Guerra e Paz de Tolstoi, Os Miseráveis de Vitor Hugo, Retrato de uma Senhora, O Monte dos vendavais, Camilo, Herculano, Camões, Junqueiro, Garret, e mais, mais, muitos mais autores de centos de livros que literalmente "devorava" na ânsia de conhecer, de aprender, mas, se calhar também, de me evadir um pouco do meu mundo real e das suas incontáveis dificuldades.
Namorisquei a partir dos treze anos por aqui ou por acoli e ofereci-me voluntário para o serviço militar tão novinho que ainda quase nem sequer tinha barba. Essa ousadia levou-me para a guerra em Angola onde me tornei ainda mais saudoso da paz e do sossego das minhas paisagens alentejanas. A seguir, como se a guerra não tivesse sido suficiente, fui comer pó de pedra a três mil metros de profundidade nas galerias das Minas da Panasqueira pelos contrafortes da Serra da Estrela, na Beira Baixa.
Casei e finalmente alistei-me nas fileiras da GNR onde afincadamente estudei para poder me candidatar-me aos cursos de promoção, primeiro a cabo, depois a sargento.
E consegui.
Não é de todo possível no entanto, passar por tantas e tão sucessivas dificuldades uma vida quase inteira, sem se ficar marcado para sempre. Se cada dificuldade vencida deixou no meu coração um sabor agridoce de conquista, deixou também em simultâneo uma amarga perplexidade de algumas inexplicáveis injustiças.
E uma infindável lista de porquês:
- Porquê tudo aquilo?
- Porque teve de ser assim?
- E… Porquê a mim?
Nunca encontrei as respostas, as razões ou os motivos.
E aqui continuo a procurar na solidão e no silêncio destes campos onde nasci, cresci e me fiz gente, a paz e a harmonia que a vida nunca me facilitou gratuitamente. Porque ficaram, para sempre, coisas que doem, magoam e entristecem.

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