No primeiro ano da minha função de comandante do
posto decidi conhecer a palmo a área cuja ordem e tranquilidade
públicas estavam confiadas à nossa responsabilidade, para melhor
coordenar o policiamento de tão grande extensão territorial. Foram precisas
muitas horas de jipe e a pé pelas povoações e acessos para perceber a
intrincada teia de estradas e caminhos rurais pelas encostas e pinhais da serra
de S. Simão a norte e nascente, depois pelas densas matas de eucaliptos a sul e
poente de Nisa.
Apesar do meu empenho as queixas dos mais diversos furtos sucediam-se diariamente no posto com prevalência para o desaparecimento dos gados que enxameiam ainda hoje por toda a área de um concelho eminentemente produtor do leite que fabrica o queijo de Nisa DOP cuja fama há muito cruzou fronteiras. Vi-me por isso na necessidade de muito em segredo, como convinha e para não espantar os ladrões antes de os conseguirmos apanhar, pedir ajuda à Polícia Judiciária de Tomar que tal como nós tinha também a seu cargo a investigação dos crimes da sua exclusiva competência na área de Nisa.
Assim começámos um trabalho conjunto cada um na sua esfera de comando mas orientado todo ele para o mesmo objetivo. Travar aquela onda de roubos e apanhar os ladrões. Muitas vezes as equipas da PJ foram recebidas na minha casa sem ninguém imaginar quem seriam aqueles senhores e muitas merendas a minha esposa preparou para eles petiscarem algo depois de calcorrearem horas a fio os agrestes caminhos de acesso aos currais na procura de pistas junto dos pastores ou mesmo no próprio terreno.
Só algumas semanas mais tarde quando por fim se conseguiu referenciar o bando de ladrões e recuperar algum do gado roubado é que o efetivo do posto percebeu quem era aquela gente estranha que frequentava a minha casa, porque a partir daí passou a haver diligências já a serem realizadas no posto, como a audição de alguns dos suspeitos, a recolha de impressões digitais, enfim, toda uma panóplia de inquirições e dèmarches necessárias à instrução dos processos-crime entretanto abertos.
Na sua maioria os roubos eram levados a cabo por um bando de indivíduos chefiados por uma imitação barata de Ali Bábá e os quarenta ladrões, residentes na zona de Belmonte e que, organizadamente, vinham durante o dia marcar o terreno, para depois durante a noite virem efetuar os assaltos, transportando imediatamente os gados para o interior da Beira Baixa e dali os encaminhavam para os matadouros a norte, numa ação perfeitamente concertada.
Foram meses de trabalho e também de cenas caricatas que nos ajudavam a descontrair esquecendo um pouco as frustrações imensas que qualquer investigação criminal inesperadamente proporciona quando, por exemplo, nos parece que estamos quase, quase, a atingir um alvo e de repente verificamos que as pistas que se vinham a seguir não eram válidas. Uma dessas situações caricatas que vivemos foi quando, depois de muito trabalho e investigação se conseguiu recuperar um rebanho de cabras todas com os seus cabritos que haviam sido roubadas a um casal de idosos no Monte do Pardo.
Fizemos questão eu e o Subinspetor da PJ de estarmos presentes na descarga do gado e respetiva entrega aos seus donos, para transmitirmos alguma confiança à população que andava inquieta e com receios permanentes de verem, uma noite qualquer, desaparecer também o seu rebanho. Por isso a nossa presença naquele ato simbólico mais do que incutir sossego queria também fazer-lhes sentir que estávamos lá e andávamos no terreno por perto deles, a tentar cumprir o nosso dever.
Assim que as cabras e os cabritos foram entregues e verificado que nenhuma faltava, veio o idoso dono, de boné na mão, agradecer. Porém, muito senhora do seu nariz e muito mal-encarada, a mulher do pastor olhou para ele com ar irritado e sentenciou:
- Ora essa! Agradecer o quê? Só fizeram a sua obrigação,
pois é para isso que o estado lhes paga!
E abalou a resmungar tocando as cabras, deixando atónito o seu homem que nos pediu para não fazermos caso dela, agradeceu novamente e lá marchou mais a mulher e as suas ricas cabrinhas enquanto nós ficámos a rir a bandeiras despregadas com o “despacho” da velhota.
- Toma lá que já almoçaste! Retorquiu divertido o Subinspector…
José Coelho in Histórias do Cota