quinta-feira, 4 de maio de 2023

Corpus Christi, oliveiras e candeio...

Foto José Coelho

O dia mais santo do ano segundo a "tia" Florinda Lourenço e Senhora Minha Mãe, era o de Corpo de Deus. Tão santo que até as folhas das oliveiras se cruzam ao meio dia em ponto para saudar a Cruz de Cristo, dizia, muito séria e convicta. Nunca conheci mulher mais devota. E nunca me cansei de ouvir as suas crenças quase sempre ilustradas por algum "caso sério" que tinha acontecido a fulano ou a beltrano, por não acatar tais preceitos.

Não podendo ir à missa todos os domingos porque mãe de quatro filhos e esposa de um camponês que tinha que acompanhar a trabalhar nos campos toda a semana, só ao domingo ficava com algum tempo para as suas lides domésticas. Limpar a casa, lavar a roupa de toda a semana, costurar algum rasgão de blusa, saia ou calças. Era assim o seu dia de "descanso semanal" muito mais trabalhoso do que o mondar do trigo e que não lhe deixava tempo para quase mais nada.

Compensou depois. 

Na última década da sua vida já viúva e com os filhos casados não faltou um só domingo, um só dia santo, um só mês de Maria ou procissão. Ia a todas. Apesar de nunca ter frequentado a catequese sabia rezar melhor que muitas beatas. Ele era para o pão amassado crescer, para o forno depois cozer, ele era ao levantar e ao deitar ou quando tinha que ir sozinha por caminhos ermos, sei lá, sabia dezenas de "rezas" como ela lhes chamava.  

Era uma sábia a minha "tia" Florinda.

Nunca me esqueço dela mas é sobretudo nestes rituais que a "sinto" mais próxima de mim. Claro que as folhas das oliveiras não se cruzam. Mas eu costumo ir sempre ver. Não por acreditar que irei encontrar algum "milagre" mas porque foi uma crença da minha Mãe. E isso une-me mais à sua querida memória. Ai de quem ousasse dizer-lhe que aquilo não era assim:

 - A gente, mesmo que nã acredite, nã deve dizer mal... 

Este ano, como sempre, irei espreitar as oliveiras do quintal. Ou, melhor dizendo, irei visitar de novo as memórias que ela cá me deixou. De cruzes não verei nada. Só ramos viçosos repletos de flores. O candeio. Era assim que os nossos antepassados camponeses chamavam aos cachos de flores que pendiam dos ramos das oliveiras nesta época do ano. E previam o ano farto ou não em azeite, mediante o aspeto desse candeio no olival.

Lembram-se decerto daquela bonita melodia "Postal dos Correios" dos Rio Grande... Quase no final cantam assim:

"Espero que não demorem a mandar
 Novidade na volta do correio
 A ribeira corre bem ou vai secar?
 Como estão as oliveiras de candeio?"

Se tivermos em conta a carga de candeio nas oliveiras este ano, não haverá azeitona a rodos nem azeite aos alqueires porque este inusitado calor o queima e faz cair precocemente. Depois, as que se conseguirem safar estarão a contas com a tal mosca que as pica e enche de bichos. 

E logo se irá ouvir:

- Est'ano à'zêtona tá toda gafa. 

O que quer dizer "toda picada e podre".

 - "Dantes nã'avia nada destas côsas"...

Desculpem a dispersão de temas num só escrito! Adoro estes usos e costumes, estes "falares" da minha região. Do meu povo. Na sua simplicidade. Na sua autenticidade. Na sua pureza de gente boa, humilde no trato mas riquíssima na idoneidade. É assim que se fala na minha terra. Eram assim os meus pais, os meus avós e todos os meus antepassados. Gente que não sabia escrever uma letra mas eram extremamente sábios e dignos. 

Aprenderam à custa das suas muito sacrificadas vidas e ensinaram-nos mais e melhor que muitas e boas escolas. Obrigado Mãe. Não quero duvidar das tuas crenças mas ainda não será este ano que verei as folhas das oliveiras todas em cruz, como tu acreditavas. 

E irei de novo pensar: 

- Qual será o meio-dia verdadeiro? O de verão, ou o de inverno? O solar, ou o que o relógio marca? 

Pois... 

Se calhar é isso! 

Nunca acertamos com o meio dia... do Dia de Corpo de Deus!

Quem sabe, alguma vez acertemos...


José Coelho
(com saudades da "tia" Florinda)