Quanto mais (sobre)vivo mais aprendo e me certifico que a Vida é uma luta constante, uma incógnita permanente que nos obriga a espavilar, a arregaçar as mangas, a enfrentar obstáculos, a vencê-los com determinação e a aceitar o que for possível. E, ainda que esse possível fique muitas vezes aquém das nossas expectativas, vezes haverá também em que elas se excederão e nos irão surpreender pela positiva. Sei do que falo, podem apostar.
Viver não é fácil, julgo que para quase toda a gente. E para mim então, nunca foi. Sei hoje sem sombra de dúvida que nunca será. Aprendi a esperar, muito novo ainda, quando tinha de sentar-me ao lume embrulhado numa manta até que enxugasse a roupa que a minha mãe tinha lavado, porque só tinha aquela. Aprendi também como é preciso andar atento, cada vez que fiquei sem a cabeça de algum dos dedos dos pés ao tropeçar nalguma pedra, porque andava descalço. Continuei a aprender que a solidariedade existe quando, já rapazote, tinha que ler livros emprestados pelos meus amigos, porque a minha mãe não mos podia comprar.
Aprendi ainda também que a vida tem prioridades inultrapassáveis cada vez que não pude associar-me aos amigos da minha idade nos petiscos dos domingos na Sociedade do tio Joaquim Farinha, apesar de, feitas no fim as contas, "tocarem" só três ou quatro escudos a cada um, já incluídas as bebidas, porque a minha ainda que pequena jorna, fazia falta à minha mãe para comprar pão.
A década de 50 foi para nascer e fazer a escola primária, a de 60 foi a do ensino secundário atrás do cu das ovelhas e das vacas do tio José Bonacho nos Pavios do Cabeço de Seixo, embrulhado todo o inverno em sacas de serapilheira que em vez de resguardarem da chuva ficavam ensopadas como esponjas, pesadas como chumbo e a molharem ainda mais do que a chuva, porque nessa época ainda não tinha sido inventado o plástico, bem mais leve e impermeável.
Depois, mesmo mesmo a findar os anos 60 e princípio da década de 70, foi a fase decisiva do resto da minha vida. Todo o futuro imediato, próximo e distante, ali se definiu. Do final de 1969 ao final de 1979 ingressei nas forças armadas como recruta voluntário, fiz o curso de transmissões de infantaria, fui promovido a cabo, fui à guerra, casei, fui pai, fui mineiro, entrei na GNR.
O objetivo da minha "pressa" é facilmente explicável. Queria deixar a vida dura do campo e das pedras do meu pai. Mas à época, sem o serviço militar cumprido, não havia qualquer hipótese. E eu queria ser... Carteiro. Vestir uma farda igual à do senhor João Sapage, andar de porta em porta a levar boas notícias. E por isso decidi vencer o obstáculo que me impedia de lá chegar. E por isso fui.
Contra todas as expectativas que algumas vezes toldaram a minha esperança de voltar a casa são e salvo, voltei. Infelizmente (ou felizmente, não sei bem) o serviço militar resolvido não me abriu as tais portas dos Correios que eu ambicionara alcançar. A revolução dos cravos estava em pleno desenvolvimento quando aterrámos de novo no aeroporto da Portela em Junho de 1974, depois de uns longos 27 meses de sustos e medos. A revolução "fechara" a possibilidade de ingresso em qualquer empresa, fosse qual fosse.
"Com os melhores cumprimentos lamentamos informar que não se encontra em curso a admissão de novos funcionários nesta empresa."
Sacrifício inútil? Talvez sim, talvez não. Sofri bastante é verdade. Mas também amadureci. Fiz-me o homem que hoje sou. Conheci o melhor e o pior do que a Vida pode dar e ensinar a cada um de nós. Foi, grosso modo, o meu "doutoramento". Duro, exigente, cheio de obstáculos que foi necessário contornar e vencer. Estava escrito que tinha de ser assim.
Dizia depois, se calhar com alguma razão, a minha família:
- Se não te tivesses oferecido voluntário, nem sequer terias já ido "lá fora"...
Porque entretanto a revolução entregou África aos africanos e acabou com a guerra.
- Se...
Diz a gente com frequência. Porém, é tão ambíguo qualquer Se...
A "nega" dos correios e depois da CP, empurraram-me para outras realidades nunca antes imaginadas. As Minas da Panasqueira. Algo que nunca poderia prever. Ser mineiro, para além de ser uma profissão longínqua e totalmente desconhecida para mim, era também quase tão perigosa como andar pelas picadas da floresta do Maiombe.
Os acidentes de trabalho são um risco real e a ter sempre em conta. Acontecem quase sempre a centenas de metros de profundidade. Tanto assim que o meu "mestre" Zé Maria de Castelo de Vide, morreu esmagado debaixo de um liso que se soltou inesperadamente de uma abóbada já depois de eu ter ingressado na GNR.
A GNR que foi a minha "empreitada" seguinte fortemente pressionado pela família - mãe e esposa - porque, entretanto, eu tinha casado e já era pai do pequeno Manel:
- Não morreste "lá fora" vais morrer debaixo do chão nessa porcaria de vida, dizia a Mãe Florinda, assustada com as más notícias que de vez em quando a comunicação social referia de alguns desses acidentes fatais.
Por isso e mais para lhes fazer a vontade do que por convicção - jamais na minha vida teria equacionado voltar a vestir uma farda - lá fui ao Posto de Santo António das Areias inscrever-me para a GNR em Setembro de 1978 quando vim passar o meu mês de férias a casa.
Fui imediatamente notificado em Outubro seguinte para ir prestar provas a Santa Bárbara em Lisboa em Novembro.
E por invisíveis artes do destino já que nunca tive ajudas de ninguém fosse para o que fosse, passei nas provas e fui admitido, tendo-me sido logo entregue a guia de marcha para me apresentar em Portalegre dali a 3 meses para iniciar o curso de formação,
Só não podia imaginar o "codilho" em que estava meter-me nem tudo aquilo que teria de enfrentar uma vez mais na minha vida, nem o quanto iria ter de cerrar os dentes para não dar largas à vontade infinita de mandar tudo e todos à puta que os pariu, para voltar novamente para as "minhas" Minas onde deixara as melhores pessoas que conheci neste mundo...
Mas esse "assunto" vai ficar para outra tarde de escrita.
Até lá...
Beirã 30Mai'23
José Coelho