Foi na segunda metade da década de 80 que teve início a
atribuição de subsídios para os gados dos agricultores. Por cada cabeça de gado
manifestada, recebiam anualmente determinada quantia tal como acontece até hoje,
pese embora agora seja já tudo informatizado e quando morre alguma rês manifestada,
os agricultores já têm outros procedimentos mais adequados para justificar sem
dificuldade a falta desse animal no controlo sanitário.
No início, porém, foi um autêntico forrobodó, pois o controlo era pouco eficaz e muito suscetível de ser viciado.
Chegavam ao meu conhecimento em jeito de cusquices de esplanada relatos recambolescos desses estratagemas. Como não havia ainda a obrigatoriedade do uso dos brincos com os números de registo nos animais, o controlo era essencialmente feito apenas pela contagem das cabeças declaradas. Os técnicos conferiam por isso apenas se o número de animais presentes no curral condizia com o número declarado para efeitos da atribuição do subsídio.
Havia reses que eram contadas um sem número de vezes por serem emprestadas de vizinho para vizinho. Muitos deles tinham por exemplo apenas 50 cabeças, mas declararem 70 ou 80. Então, havia que pedir emprestadas as que seriam necessárias no dia da fiscalização. Por sua vez, o vizinho depois fazia exatamente o mesmo. E assim viciados, os dados estatísticos eram completamente falsos, porquanto constavam inscritas existências de cinco mil ovinos num concelho onde na realidade só existiriam três mil.
Para cúmulo da facilidade as visitas dos técnicos para essa conferência das existências declaradas eram sempre previamente avisadas com alguns dias de antecedência para que os proprietários mantivessem os gados nos currais no dia e hora aprazados.
O que hoje vou relatar foi um episódio real em que fui interveniente direto e tem a ver com essa situação.
- Ó diabo! Trinta ovelhas? Tiveram de levar uma camioneta. Pensei.
Um cabrito aqui, um borrego ali, até mesmo um bezerro acolá, de vez em quando já acontecia por aqueles arredores, tendo em conta que em todo o concelho de Nisa, desde Vila Velha de Ródão, Arneiro, Pé da Serra, Monte Claro, Amieira, Arez e até quase à Comenda, é cheio de cabanas de gado bovino, caprino e ovino. E esses pequenos delitos, na maior parte das vezes, eram feitos para consumo de casa de alguns vizinhos, daqueles que gostavam de ter nas suas arcas congeladoras boas carnes mas não as queriam comprar…
Mas, diacho! Trinta ovelhas era quase o rebanho inteiro e isso exigiria um transporte para as carregar, teria havido um chavascal imenso para agarrar uma a uma, enfim, um trabalhão que inevitavelmente deixaria muitos vestígios no local.
Sem pensar duas vezes meti-me no jipe com o queixoso atrás de nós e fomos de imediato para o local do denunciado crime.
Lá chegados e para enorme surpresa minha não havia um só rasto visível. Nem de qualquer rodado de veículo, nem pegadas de calçado, nem qualquer vestígio de luta com as ovelhas que não se deixariam seguramente agarrar de mão beijada, mesmo durante a noite. Nem sequer a fechadura da cabana tinha sido forçada.
Deduzi imediatamente que o queixoso não estava a falar a verdade, pela sua falta de à-vontade, pelas suas respostas evasivas, por todo o seu ar comprometido e meio atarantado.
Em jeito de graça, comentei:
- Ó senhor (fulano) as suas ovelhas não devem ter sido roubadas! Devem é ter levantado voo, porque como vê, aqui não há sinais de nada. Ninguém aqui chegou, nem de camioneta nem a pé, senão teriam deixado rastos. Logo, só pode ter sido a voar as suas badanas se sumiram…
- Pois! Respondeu ele.
E, muito mais preocupado com aquilo que de facto o afligia, do que com o “roubo” das ovelhas, desabafou ingenuamente:
- O pior é que vêm cá hoje os fiscais contá-las e agora faltam-me essas trinta! O senhor tem de me passar um papel “em conforme” foram roubadas esta noite!
- Bingo! Pensei eu. - Cá está o cerne da questão!
Voltámos para o posto. Com a maior diplomacia de que fui capaz, disse-lhe que era óbvio ele não estava a falar verdade e que isso podia ser muito complicado pois estava a causar um falso alarme na população e a cometer uma série de infrações. Por isso o melhor era recuar na sua atitude pois para receber meia dúzia de contos de reis indevidos, estava a denunciar um crime inexistente que até um cego veria que aquilo era uma esperteza dele que lhe podia dar prisão.
O homem pensou, ponderou melhor e confessou que, sim senhor, era de facto mentira. Não lhe tinham roubado nada. Ele é que tinha declarado as 30 ovelhas a mais e nunca pensou que eu iria lá procurar o rasto dos ladrões, pois a única coisa que queria era o papel da queixa para a mostrar aos técnicos do Ministério da Agricultura “em conforme” tinha ido denunciar o roubo daquelas ovelhas que faltavam.
Entretanto, porque a queixa fora formalmente apresentada e havia sido devidamente registada pelo plantão, assim como também fora comunicada pelo sitrep-rádio diário, não podia a Guarda fazer outra coisa senão enviar o respetivo auto de denúncia para o Magistrado do Ministério Público do Tribunal de Nisa, com a descrição de todos os factos...
José Coelho in Histórias do Cota