quarta-feira, 17 de maio de 2023

Piromania

Imagem da net

 

Ainda mal tinha começado o Verão e já era o terceiro incêndio nas proximidades de Arêz, uma das freguesias do concelho e área do posto de Nisa. As pessoas andavam inquietas e murmuravam entre si apontando o dedo a determinado indivíduo que “por casualidade” era sempre o mesmo a dar o alarme, o que levantava a suspeita se não seria ele o pirómano, dado que, em qualquer deles, as causas eram indeterminadas e muito estranhas, não se coibindo os bombeiros de afirmar que aquilo era com toda a certeza fogo posto.

Dei indicações para que o indivíduo fosse discretamente vigiado pelas patrulhas mas não se vislumbrava nada que pudesse confirmar as nossas suspeitas. Porém não tardaram muitos dias para que a sirene do quartel dos soldados da paz voltasse a fazer ouvir o seu apelo aflitivo porque havia novo foco de incêndio em Arêz.

- Enquanto não engavetarmos o gajo isto nunca mais tem fim, refilava o graduado que nesse dia estava de comandante do piquete. Arrancaram ainda primeiro que os bombeiros com indicação de verificarem e se eventualmente o “tal” rapaz fosse visto nas proximidades do sinistro que o trouxessem com eles para eu ter uma “conversa particular” com ele.

Dito e feito.

Como sempre, a primeira pessoa que a patrulha encontrou já muito entretido a combater o fogo com um ramalho verde, foi o dito cujo. Cumprindo as minhas indicações a patrulha logo informou o indivíduo que teria de os acompanhar depois do fogo extinto pelos bombeiros que haviam entretanto chegado e em poucos minutos controlaram a situação. Porque naquele, como nos anteriores três focos de incêndio anteriores, os prejuízos se resumiam a algumas centenas de metros de pasto e umas quantas oliveiras ardidas.

A patrulha fez como lhe competia o inquérito sumário das causas do sinistro mas tal como nos anteriores não chegaram a nenhuma conclusão concreta na medida em que não havia vestígios de ninguém nas proximidades, nem queimadas de qualquer espécie e daí se concluía facilmente que alguém gostava de lume, ou de fumo, ou de ouvir as sirenes dos bombeiros a apitar e para isso se divertia à sucapa largando fogo aqui e além em sítios mais ou menos esconsos nas proximidades da povoação.

Deduzia-se por isso também que fosse quem fosse, era pessoa que se deslocava a pé desde lá.

Apesar de eu ter formada e quase certa a suspeita que seria mesmo aquele energúmeno, a verdade é que sem provas concretas nada feito. Não podia haver qualquer procedimento criminal tanto mais que os prejuízos eram de pouca monta. Quando muito poderia apenas ser invocado o alarme social que a situação andava a provocar na população.

Assim, depois de feito o seu trabalho no terreno, a patrulha fazendo-se acompanhar do suspeito regressou ao posto. Eu já conhecia bem a peça. De vista. Pela sua fama de traste mas não só. Assim que ele entrou no meu gabinete exclamei de súbito, para lhe não dar tempo de raciocinar muito e como se tivesse a certeza absoluta do que o estava a acusar:

- Ora cá temos então o homem que anda a atear fogo aos pastos de Arêz…

O gajo olhou para mim encavacado, mas não se desmanchou e logo negou. Qual quê! Ele até era muito boa pessoa e até era o primeiro sempre a acudir e a apagar os fogos e mais isto e mais aquilo.

Como eu já contava com isso não desarmei e continuando num tom muito seguro, retorqui:

- É verdade sim senhor. Ajuda sempre. Mas também sempre acontece uma coisa estranha! Você chega lá primeiro que a patrulha e que os bombeiros e não teria tempo de lá chegar indo a pé da aldeia como você vai!

Ia sendo!

O moço empalideceu ligeiramente, baralhou-se um pouco, mas de seguida recompôs-se de novo e respondeu-me com pouca convicção.

- Olhe, hoje, por exemplo eu estava a cagar debaixo de uma figueira quando vi o fumo ali perto e corri logo para lá. Por isso é que cheguei primeiro que a patrulha e os bombeiros…

- Ai sim? Que casualidade! Você vai cagar lá p’ra longe das casas para o cheiro não incomodar os seus vizinhos! Que gesto tão enternecedor...

E continuei:

- Muito bem, agora vai levar-me lá, ao sítio onde cagou, porque eu quero ver com os meus olhos a sua cagada debaixo da figueira, pois só assim me convenço…

Visivelmente aflito o gajo não desarmou todavia e com a maior cara de pau afirmou:

- Não vale a pena irmos lá, porque com tanta gente que por ali andou a apagar o fogo, já o devem ter pisado…

- Pois! Já calculava! Observei.

- Então, a escolha é sua. Quer lá ir mostrar-nos o cagalhão e provar que está a dizer a verdade, ou quer já confessar sem mais chatices, que você é que tem por lá andado a deitar fogo aos pastos?

O indivíduo hesitou, pensou e concluiu:

- Se eu confessasse uma coisa dessas ia parar à cadeia…

De parvo o tipo não tinha mesmo nada, como aliás quase todos os delinquentes. Vi que dali não ia conseguir tirar mais e não havia matéria suficiente para o constituir arguido e ser presente ao Ministério Público.

Mandei por isso sair quem estava no gabinete, porque, à falta de provas, só me restava a solução de uma “conversa particular” a sós.

E assim aconteceu.

Após essa conversa amigável que durou menos de dois minutos, adverti-o:

- Pode ir, caro amigo! Mas já sabe. Por cada fogo que haja em Arêz, você terá de vir sempre aqui “conversar” comigo. Estamos entendidos?

Foi remédio santo!

Não voltou a haver fogos em Arêz, nesse verão...

 

José Coelho in Histórias do Cota