Em 1975 as
Minas da Panasqueira pareciam ser no fim do mundo. Tinha de ir de autocarro da
Beirã até Portalegre. Ali mudava para outro que ia até Nisa. Em Nisa mudava
para outro que ia para Castelo Branco. Em Castelo Branco apanhava o comboio até
ao Fundão. No Fundão tinha de esperar pelo autocarro que ia para São Jorge da
Beira e fazia todas aquelas aldeias, passando na Barroca Grande onde estava
sedeada a empresa mineira inglesa Beralt Tin & Wolfram que suponho ainda
hoje detém aquela exploração mineira, embora mais reduzida.
Dez horas de viagem! Uma pessoa chegava lá mais moída que carne picada, mas valeu a pena. E como valeu! Foi o lugar onde mais gostei de estar em toda a minha vida porque as pessoas eram simplesmente fabulosas. O primo João Gaspar, a esposa Maria José e os seus dois rapazes, o António e o Zé Manel. O primo Antero, a esposa e as filhas. O José Mouro e toda a sua família. E muitos outros, tudo gente de bem e profundamente solidária que me receberam e acarinharam como se de mais um filho seu se tratasse.
Há coisas que nunca mais se esquecem na vida e favores que jamais conseguiremos retribuir, por mais anos que vivamos.
O trabalho era duro e arriscado. Mas esse pormenor era irrelevante perante o cenário que me trazia tudo quanto eu mais necessitava naquela altura. Estabilidade. Trabalho certo e bem remunerado, um vencimento mensal três vezes superior àquele que se praticava no concelho de Marvão, além da verdadeira amizade, camaradagem, solidariedade de toda aquela boa gente. Vivia plenamente feliz cada dia. Os mineiros eram uma enorme e imensa família e eu sentia-me como se lá tivesse vivido sempre.
Naquele tempo éramos mais de dois mil os trabalhadores da Beralt Tin & Wolfram, entre os mineiros que trabalhávamos no interior da terra, os operários da lavaria – mecanismo de lavagem dos minérios à boca da mina – os camionistas e maquinistas exteriores, os escriturários dos escritórios, os funcionários do hospital particular da empresa, do clube de recreio, das cozinhas e refeitórios e de toda a panóplia no apoio logístico que era um autêntico luxo, tendo em conta a precaridade de condições existentes noutra qualquer empresa nacional desse tempo. Os ingleses não brincavam em serviço e cuidavam primorosamente do bem-estar de todos os seus funcionários, desde o administrador da empresa até às senhoras das limpezas.
A mina e a lavaria laboravam 24 sobre 24 horas em 3 turnos rotativos de 8 horas. E todos fazíamos os 3 turnos à semana. Um, das zero às oito da manhã, outro das oito às dezasseis e outro das dezasseis às zero. Nas encostas envolventes da Barroca Grande tinham sido construídos um moderno hospital, uma igreja, uma escola, um clube recreativo com campo de futebol e ringue de patinagem, além de vários e excelentes bairros habitacionais onde residiam mais de quinhentas famílias dos mineiros. No vale adjacente foram implantados um refeitório self-service e quatro imensos dormitórios, cada um com vinte quartos, cada quarto com capacidade para quatro mineiros, tudo devidamente equipado com aquecimento central e instalações sanitárias individuais com duche de água quente para acomodar os mineiros que como eu lá não tinham a família, mas usufruíam na mesma maneira de todas as comodidades.
Até ao dia em que comecei a ser mineiro pensava que o trabalho mais duro que existia no mundo era o trabalho do campo onde cada camponês tem de levantar-se de madrugada e só se deita alta noite. Por tudo quanto conhecia dessa minha anterior vida, fiquei pasmado com a aspereza do trabalho mineiro, muito mais perigoso sujo e imprevisível do que qualquer serviço agrícola. Nas primeiras semanas quando laborava nas profundezas da terra a mais de três mil metros da boca da mina iluminado apenas pelo pequeno farol encaixado no capacete e alimentado por uma pilha presa ao cinto das calças, mais de uma vez senti o desconforto claustrofóbico de todos os principiantes mineiros no meio daquela humidade e escuridão, habituado que estava ao ar puro dos campos onde eu sempre vivera até então.
Comecei por ser ajudante de marteleiro na abertura de chaminés.
E o que eram essas chaminés?
Nada mais nada menos do que poços com 100 metros de altura, porque abertos de baixo para cima, afim de ligarem verticalmente as galerias do nível 3 às do nível 2 ou do nível 2 às do nível 1. As Minas da Panasqueira têm dezenas de quilómetros de galerias em níveis sobrepostos a cada 100 metros de profundidade, o que quer dizer que o nível 3 se encontra à profundidade vertical de 200 metros e cada um desses níveis tem depois uma imensa rede de galerias paralelas ligadas entre si que avançam serra adentro por mais de cinco quilómetros na horizontal.
Marcadas pelos topógrafos no local exato onde era preciso abrir a nova ligação ao “andar” de cima, começava por se abrir um buraco redondo no teto da galeria com um martelo pneumático vertical movido a ar comprimido. Depois de todos os buracos abertos com as brocas de 1,20m, eram carregados pelo marteleiro e por mim com velas de dinamite previamente preparadas com detonadores ligados entre si e cujo fio condutor ligávamos depois já longe da chaminé a um sistema elétrico central que a uma pré-determinada hora iria ser explodido por controle remoto.
Assim avançavam de baixo para cima, aqueles poços ao contrário.
À medida que íamos subindo em direção à galeria superior onde ia certeiramente terminar 100 metros mais acima, tínhamos de ir todos os dias chumbando à parede de um dos lados do poço as grades de aço com cremalheira lateral onde encaixava e subia metro a metro o elevador dobrável movido também a ar comprimido e onde levávamos sempre tudo de uma só vez. O martelo-compressor, as brocas, a grade para acrescentar o novo metro de ascensão ao elevador, a dinamite para depois carregarmos os novos furos, os detonadores e os fios elétricos para os armadilhar.
Cada equipa, em cada frente, trabalhava sempre e só no mesmo sector. Não havia misturas por questões óbvias de segurança.
O pequeno elevador era de plataforma redonda como a chaminé (ou poço) e com o diâmetro adequado para ir subindo sem problemas pelo buraco acima. Tinha um “chapéu” metálico tipo sombrinha que se abria e nos protegia dos calhaus que ficavam suspensos no rebentamento dos explosivos e se iam desprendendo do teto pela trepidação causada pelo elevador à medida que este ia subindo. O estrépido dos calhaus a baterem na chapa de ferro a um palmo das nossas cabeças era ensurdecedor. E atemorizante também, apesar de todo aquele equipamento ter sido pensado para proteger quem lá tinha de trabalhar.
Chegados lá acima, a primeira coisa que tínhamos de fazer era chumbar a nova grade do elevador para ele subir e nos aproximar mais do teto e podermos escombrar convenientemente as pedras ainda meio soltas até ficar só a rocha firme para furar de novo e voltar a carregar. Confesso que pensei algumas vezes que tendo-me “safo” no Maiombe, corria agora ali o risco de acabar os meus dias nas entranhas da terra. Pelo sim pelo não era meu hábito proteger sempre com o meu corpo as velas de dinamite e os detonadores debruçando-me sobre eles, não fosse alguma pedra ao soltar-se do teto, fazer ricochete na parede do poço e cair-lhes em cima, provocando o seu rebentamento.
O camarada marteleiro ria, ria, ria, divertidíssimo com os meus receios pois andava naquilo há 3 ou 4 anos e tratava as pedras, os explosivos e o perigo, por tu. Provavelmente por isso morreu, coitado! O excesso de confiança fez com que menosprezasse a sua segurança e pereceu esmagado debaixo de um bloco (liso) que se despegou subitamente do teto poucos meses depois de eu ter ingressado na GNR. O calhau era de tão grande dimensão que tiveram de usar explosivos para diminuírem o seu volume para conseguirem retirar os restos mortais do infeliz Zé Maria.
Não sendo por aí além muito frequentes, não deixam por isso de acontecer os acidentes fatais de vez em quando em todas as minas, tendo eu próprio presenciado alguns, nos cinco anos que por lá andei...
José Coelho in Histórias do Cota