segunda-feira, 22 de maio de 2023

Em memória de um bom camarada e grande amigo

Foto no Belize junto ao Posto de Rádio

 

Todas as baixas do BCav3871 foram dolorosas para os Cavaleiros do Maiombe. Todas. Porém houve uma delas que me afetou muito particularmente. E nem sequer foi uma baixa em combate mas um acidente de viação nas imediações de uma tranquila povoação chamada Dinge na estrada que liga o Belize a Cabinda e relativamente afastada já da zona de maior perigosidade na altura.

Como todos os seus antecessores foram sempre fazendo, também o Comando do nosso Batalhão quis ir melhorando as condições de conforto e de habitabilidade do aquartelamento para os seus militares. Para isso eram necessários materiais de construção, nomeadamente areias que se iam carregar a Lândana, uma pequena vila no litoral do enclave.

E foi numa dessas programadas viagens que me calhou, pela escala, o serviço de operador-rádio da coluna que iria escoltar as Berliet’s que transportariam a areia. Nenhuma patrulha ou escolta saía nunca à porta d’armas de qualquer quartel sem levar um operador de transmissões porque era esse o único elo possível de ligação à base, naquele cenário de permanentes conflitos.

Ao aperceber-se que ia haver uma saída para Lândana e que o operador de serviço à escolta era eu, o meu camarada e amigo Soldado Transmissões Luís Manuel Oliveira Borges, fazendo valer a boa amizade que nos unia, massacrou-me insistentemente a cabeça para o deixar ir no meu lugar.

Na vida civil o Borges era pescador da Afurada - Gaia. E a praia mais próxima do Belize ficava exatamente em Lândana, a cerca de 200 km. E naquele dia, não por minha expressa vontade mas pela escala de serviço, tocara-me a mim ser o operador-radio da coluna auto. As trocas de serviço eram permitidas em qualquer repartição, desde que por motivo justificado, depois de devidamente autorizadas.

O habitual era precisamente o contrário. Sendo eu o cabo mais antigo da equipa de Transmissões, era também quem ia muitas vezes de operador-rádio no lugar de qualquer um deles, pois éramos oito. Porque o camarada que estava escalado queria ir jogar futebol coisa que eu não apreciava, ou porque ia ser transmitido algum relato de jogo importante do Puto e a que eu também não ligava nada, ou por outra qualquer plausível razão, inúmeras vezes fui no lugar de todos eles, sem exceção.

E também assim, naquele dia, incapaz de ficar indiferente aos insistentes rogos do meu camarada pescador, até porque, sendo Alentejano raiano do lado oposto ao litoral português, gosto muito mais da serra do que do mar, lá fomos os dois ter com o nosso Alferes Amaral Dias que sem qualquer hesitação – como sempre, porque confiava em todos nós – autorizou imediatamente a troca de serviço.

E lá foi o camarada Borges matar saudades do seu mar, tão contente, tão animado, tão feliz! Em má hora o fez. Gravemente ferido quando a viatura em que seguia com o radio capotou num aparatoso despiste nas imediações do Dinge, teve de ser evacuado para Luanda por via aérea e dali para Lisboa. Não mais voltou ao Maiombe e não mais nos voltámos a ver.

Consegui saber, anos mais tarde, que ele já não se encontrava entre nós, porque falecera de doença grave. Que descanse em paz na eterna glória. 

Até hoje não compreendi as voltas que o destino de todos nós às vezes dá. O camarada Borges só queria matar saudades de algo que também amava. O oceano. Vê-lo, ouvi-lo, tocar-lhe, sentir o seu odor salgado, quiçá imaginando que a oito mil quilómetros de distância, na Afurada, os seus pais, algum dos seus três filhos ou a sua esposa, estariam também à beira-mar, com saudades iguais às que o atormentavam a ele…

 

José Coelho in Histórias do Cota