Sozinho em casa
em tarde de domingo gordo deste ano da (des)graça de dois mil e vinte e três.
Vão longe os tempos em que nestes dias saíamos de casa após o almoço e só regressávamos altas horas da madrugada para dormir, porque pouco era o tempo para a folia e
demasiados os locais pelas redondezas para nos divertir-nos horas a fio. A
Sociedade Recreativa da Beirã, o Salão do Mané Batista dos Barretos, o
cruzamento d'áRanginha, o salão de bailes no rés-do chão, ou da discoteca Cave
de Santo António das Areias, quando não era ainda também alguma fugida de
comboio até à Estação de Castelo de Vide, para irmos ver os corsos à Vila.
Inesperadamente, a rede social onde me entretinha a passar o tempo, recomendou-me que consultasse os fotos que publiquei neste mesmo dia em anos anteriores. E, entre muitas outras, apareceu-me a que publico a ilustrar esta narrativa. O meu Pai encostado ao sacho, lado a lado com o ti João Forte (pai) seu patrão e amigo de quase todas as suas vidas, na eterna horta que tiveram "a meias" durante décadas, junto ao tanque grande e seu chafariz do Monte da Broca. Mais interessante ainda, os dois sorridentes, coisa que era tão rara, tão rara no meu pai, que até me embaraça, porque levo a vida a dizer que sou um pouco beiçudo (mal encarado) porque saio a ele que não era muito de mostrar os dentes.
Baixotes e franzinos de estatura, gigantes porém na sua bondade como seres humanos, homens sérios, leais, de respeito e de uma honradez sem limites. O meu pai, sendo de Castelo de Vide, conheceu e começou a trabalhar para o ti João Forte da Beirã - provavelmente de Santo António das Areias à data do seu nascimento - na década de 40 do Séc. XX como sócios "a meias" numa várzea no ribeiro e sítio do Vale de Cano, no "partir dos termos" do Concelho de Marvão com o Concelho de Castelo de Vide, propriedade da Família Forte.
As "meias" daquele tempo eram assim chamadas, porquanto o dono da terra dava, por uma época pré-estabelecida entre os dois, o terreno devidamente lavrado, estrumado e pronto a cultivar bem como o regadio assegurado, as plantas para replantio, e, no final da fega, o transporte do produto para as respetivas fábricas nas redondezas. Por sua vez ao hortelão competia tudo o resto. Embelgar a terra, plantar e semear, regar, sachar, mondar, colher os frutos quando maduros, acondicioná-los em sacas ou caixas, tomar nota do seu peso e encaminhá-las para o destino.
Foi nestas andanças e época que o meu Pai conheceu a minha Mãe por estas bandas, a namorou e roubou aos meus Avós Amélia e Zé Lourenço, levando-a uma noite depois do namoro para o Vale de Cano com ele, para ali passarem as suas núpcias e lua de mel no meio dos pimentos de sacho na mão, seguramente felizes como sempre os vi. Em janeiro de 1948 nasceu a minha falecida irmã Adelina, não nesta casa que o nosso pai já andava a construir mas ainda não estava pronta, mas onde já nasci eu, a sa irmã do meio Maria da Luz e a irmã caçula Joaquina Maria.
O meu Pai apesar de ser um pouco mais novo que o patrão faleceu vítima de cancro da próstata, no dia 23 de janeiro de 1994 com 83 anos, enquanto o ti João Forte faleceu alguns anos depois quase a completar 103 anos de vida. O meu Pai mesmo com uma algália permanente por nunca ter querido deixar-se operar, continuou a fazer a horta na Broca até quase ao fim da sua vida, enquanto o ti João Forte foi acolhido em casa da sua filha e por lá se finou. Foram os dois indubitavelmente grandes mentores e responsáveis na formação do meu carácter. Continuo e vou continuar até ao fim da minha vida a tentar imitá-los para honrar como merecem, a sua querida memória.
Já não vai havendo pessoas assim. Um abraço saudoso e apertado para os dois, onde quer que se encontrem.
José Coelho
Não sei quem foi o autor da foto, só sei que foi o João Forte (filho) que a ofereceu ao meu Pai.