segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Coisas que escrevi, faz tempo

Rua do Comércio - Portalegre - Foto do Google


O que hoje vou escrever aconteceu na cidade de Portalegre onde tive de ir por motivo de uma das minhas consultas de rotina na pneumologia da ULSNA. Terminada a consulta rumámos eu e a minha companheira à Rua do Comércio em busca de coisas que nos faziam falta e ali costumamos adquirir nas lojas das quais somos clientes de já longa data.

Sem grande surpresa encontrámos a Rua do Comércio quase vazia de gente e também de lojas. Salta à vista a escassez de ambas.  Na primeira em que entrámos fomos recebidos com a estima e consideração que sempre caracterizou o atendimento no comércio tradicional quer nas nossas cidades de província, quer nas vilas e aldeias, algo inexistente nos super's, híper's ou fóruns, onde o que conta é a faturação e o consumo e ninguém conhece ninguém. É um atendimento impessoal e frio, sem lugar à componente que gerava empatia vendedor/consumidor e criava laços de afetividade humana tão saudáveis como necessários por vezes ao nosso bem-estar geral. 


Não resistimos a comentar tanto silêncio naquele percurso da cidade tão emblemático e cheio de história local e por isso manifestámos à senhora que ao balcão amavelmente nos atendeu - como sempre - a nossa estranheza por estes tempos modernos onde o vazio e a escassez de gente vai ganhando cada vez mais terreno por todo o interior do nosso país. As lojas fechadas sucedem-se umas às outras num cenário desolador e de deprimente abandono. E eu a julgar que só na minha Beirã havia ruas inteiras de casas vazias!


- Sabe quantas lojas já estão fechadas na Rua do Comércio? 

Perguntou-me amavelmente a senhora. 

- Quarenta! Rematou. 

Quatro dezenas de portas fechadas na mais comercial das ruas da Portalegre antiga, onde eu comprei o meu fato de casamento, depois os fatos de batismo e comunhão dos filhos e até já também mais recentemente algumas roupinhas para as minhas netas. 

Inacreditável.


Não seria, ainda assim, aquela revelação, a maior surpresa do dia. Comprado o que precisávamos na primeira loja, dirigimo-nos em seguida a uma outra mais acima, da qual, de igual modo, somos também clientes há décadas. Atrás do balcão uma doçura de senhora a atender-nos com a simpatia e amizade que tanto a caracterizaram sempre pela positiva. Não tinha o que pretendíamos mas a confiança dos muitos anos como seus clientes resultou numa amena conversa a três. 

E que conversa! 

A digníssima senhora tem 82 anos e aquela loja há mais de 60. Pensou trespassá-la e aposentar-se, mas ainda não o pôde fazer porque tem a viver consigo a filha que ficou desempregada, o genro que trabalha todos os meses do ano mas a quem o patrão umas vezes paga, outras não por causa da crise e falta de dinheiro que afeta as empresas por todo o lado, sendo que dessa filha e genro a doce senhora tem ainda também um neto adolescente, todos a viverem em sua casa por absoluta necessidade. 

Com tão escassa procura  e vendas reduzidas a quase nada, não consegui evitar estremecer involuntariamente quando num lamento triste e muito sentido a senhora nos disse: 

- Nunca na minha vida vivi tão mal!

Despedimo-nos com a amizade do costume mas passei o resto do dia algo melancólico com a narrativa daquela senhora de já tão proveta idade mas que tem de continuar a passar os dias atrás do balcão da sua loja para angariar algum sustento para os seus, quando devia e merecia estar já mas é no aconchego da sua sala de estar a fazer tricot, ou numa esplanada em amena cavaqueira com as amigas, entre um chá e a leitura de uma qualquer revista do seu agrado, no gozo pleno de uma tão merecida reforma. 

É este o país real em que vivemos. Foi para isto que se fez o 25 de abril e aderimos com tanta pompa e circunstância à União Europeia? Quantas mães, avós e sogras estão na mesma situação daquela nobre senhora? Quantas mais histórias destas haverá escondidas na nossa rua, no nosso bairro, na nossa terra? Ontem e mais uma vez senti-me mal por ter de viver num país tão injusto, gerador desta e de tantas outras histórias tristes que vivem ocultas na vergonha que muitas pessoas sentem em as assumir.

Entretanto como é do conhecimento geral e comummente aceite como se fosse normal, aqueles que ao longo de mais de 40 anos foram passando pelos sucessivos poleiros governativos e seus afins, nadam na abundância das suas douradas pensões vitalícias de muitos milhares de euros, acrescidas outras mordomias também vitalícias, tudo a somar às suas mais que duvidosas fortunas as quais todos desconfiamos como foram conseguidas por muitos deles não terem onde cair mortos antes de se meterem nas lides políticas. 

E são esses mesmos felizardos que vêm para as televisões e jornais frequentemente dizer que precisamos de fazer mais sacrifícios. Dizem-no assim, tranquilamente, com todos os  dentes que têm na boca, sem qualquer vestígio de pudor, como se também tivessem de andar a contar os trocos dia a dia ou terem de optar entre ir à farmácia comprar os medicamentos ou ir ao supermercado comprar comida.

Não tem tamanho a repugnância que sinto por tudo o que vejo acontecer em meu redor em pleno século XXI. Não sou adepto de histórias da desgraçadinha mas o desabafo tão sentido e triste daquela respeitável senhora que aos 82 anos é obrigada a trabalhar para acudir aos seus dadas circunstâncias a que os governos deste país nos conduziram, mexeu com todas as minhas sensibilidades de estimação. 

Até com as mais blindadas.

José Coelho
20.02.2015