terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Rumo ao sol poente...

Foto Pedro Coelho


Quando decidi regressar definitivamente à Beirã depois de ter estado fora um ror de anos distribuídos pelo serviço militar, seguindo-se as Minas da Panasqueira de onde transitei para a GNR a desempenhar funções em Castelo de Vide, depois em Nisa e finalmente em Portalegre, eram já quase trinta e três as primaveras passadas fora desta terra amada, embora nem sempre demasiado longe dela.

Em boa verdade nunca estive completamente ausente porque vinha cá amiúde, exceto enquanto fui ao ultramar. O meu filho Manel só de cá saiu para se juntar a nós quando já tinha oito anos, na nossa mudança para Nisa, dado que até essa altura nunca quis deixar a avó nem as tias que o criaram. Por isso foi cá que frequentou quase todo o ensino primário, feliz da vida. Por essa razão mas não só, rara era a semana em que não tínhamos de cá vir, embora esse facto não nos conferisse o estatuto de habitantes da aldeia.

Devo dizer, no entanto, que esse sonho que nunca me abandonou a vida toda desde que de cá saí pela primeira vez no dia 7 de Maio de 1971 para ir assentar praça a Elvas até ao dia 1 Novembro de 2003 que me trouxe definitivamente de volta, foi sempre o mesmo. Regressar e nunca mais de cá sair. Foi neste local que planeei sempre envelhecer e provavelmente morrer. Estas casas, estas ruas, estas pessoas, estes canchos e matagais, este cheirinho das giestas em flor, o cantar da passarada, a paz infinita que se respira por todo o lado, foram, são e serão sempre para mim, o mais perfeito paraíso na terra.

Nunca encontrei nenhum lugar mais sedutor apesar de ter conhecido outras terras de gente boa que nos recebeu e tratou também muito bem e onde estabelecemos amizades verdadeiras daquelas que são para durarem a vida toda. Li algures que há na natureza alguns animais que voltam sempre ao lugar onde nasceram quando sentem que se aproxima o fim das suas vidas. Se calhar eu sou também portador desse instinto primário, porque nunca imaginei outra hipótese. Tanto assim é que há muito, muito tempo, tratei de adquirir a outra “casa” onde irei “morar” até à eternidade ao lado daquela onde “moram” já os meus queridos progenitores.

Ainda me lembro da reação e surpresa de toda a família mais próxima quando tal aconteceu. Mas como nunca fui supersticioso e sempre soube muito bem o que quero, não tive qualquer hesitação em avançar com essa providência pela exclusiva razão de querer, quando esse dia chegar, descansar definitivamente naquele preciso lugar, ao lado dos dois entes queridos a quem devo a vida e tanto amei. Sou um homem de convicções fortes, determinado, com as ideias em ordem e muito bem resolvido. Entendo por isso que apenas providenciei, por vontade própria e lúcida decisão, aquilo que no futuro virá a ser necessário.

Nem tudo foram rosas no decurso desses meus 33 anos de ausência. Pelo contrário. A ida à guerra ensinou-me da pior forma o quanto é bom vivermos em paz. Os traumas profundos de ver mortos ou estropeados alguns infelizes camaradas fizeram-me refletir sobre o intrínseco valor da vida e o quanto ela é frágil, imprevisível e fugaz. Nos piores momentos voltei-me sempre para a Mãe do Céu que morava na Beirã muito perto da minha Mãe da Terra. Tenho mil razões e outras tantas convicções de que se não fosse a ajuda divina, talvez já não estivesse aqui.

Mas adiante porque essas coisas íntimas e pessoais prefiro guardá-las só para mim. Abordei o assunto apenas para concluir que não foi só a guerra, mas também outras misérias humanas que tive de enfrentar ao longo da vida profissional tais como pais que mataram filhos a tiro, famílias desfeitas em acidentes de viação, violência das mais diversas formas, o desfiar de muitas misérias alheias perante os meus olhos e nos tribunais que me ensinaram a amar e a valorizar ainda mais a minha tranquila e bem frequentada Beirã com tudo o que de bom ela representou sempre na minha vida. Daí ansiar tanto pelo regresso, em cada dia de ausência.

Não imaginava porém, nesse tempo, quanto o meu sonhado futuro iria desiludir-me. O dia a dia que está a acontecer neste preciso momento já desfigurou, descaracterizou e  varreu do mapa tudo o que de melhor havia na minha querida aldeia. A passos largos. Há mais de uma década foi encerrada a sua Estação. Porque o Ramal de Cáceres foi desativado, e, com ele, tudo o que lhe era afim. Essa decisão de quem manda - só não sei se bem - teve mais graves consequências ainda. Levou a maioria dos habitantes e com a sua partida foram-se extinguindo e encerrando os comércios e serviços que cá havia perante a passividade e indiferença de quem detinha o poder.

Nunca fui homem de chorar sobre leite derramado. Mas aquilo que vi aqui acontecer não tem nada a ver com um copo cheio de leite que tomba por acidente e se perde. O que está a acontecer aqui e um pouco por todo o interior de Portugal, é tão só e apenas a extinção fria, calculada, insensível e injusta, de povoações e modos de vida de portugueses que deveriam ser tratados e cuidados com a mesma equidade com que são tratados os das vilas e cidades do litoral. Todos deveríamos merecer oportunidades e condições de vida iguais, ou, pelo menos, semelhantes. Porque este país não é, nunca foi, só Lisboa e Porto ou Coimbra.

Este país no seu todo, foi conquistado desbravado e povoado à custa de muito sangue suor e lágrimas por gerações de gente trabalhadora e valente, a duras penas, ao longo de mais de seis séculos. É arrepiante a forma leviana e criminosa como agora uma fatia imensa do seu interior está a ser literalmente apagada, despovoada, votada ao mais completo abandono e à indiferença por aqueles que só saem do conforto dos seus gabinetes para virem visitá-lo de quatro em quatro anos com os interesseiros motivos que todos conhecemos.

De nada servirá o meu grito de revolta e de profunda decepção. Sei que nada remediará. Ainda assim nunca me calarei. Sei que não sendo muito letrado sou pelo menos um cidadão que tenta cumprir na íntegra as suas obrigações cívicas para com o estado e para com os seus concidadãos em geral. Sempre! Sei também que dei o melhor de mim a vida inteira, ao meu país e à minha gente. Cumpri o serviço militar voluntariamente ainda quase nem barba tinha e  desempenhei as minhas funções públicas e profissionais com vontade, dedicação e respeito pelos meus deveres regras ou obrigações. Eduquei e ensinei o melhor que pude os meus filhos que muito me orgulham também pela sua postura de homens íntegros, excelentes pais e atinados chefes de família que sabem ser.

Sinto por tudo isso e por muito mais que não merecia ver roubado desta forma nem o meu sonho, nem o meu chão, nesta caminhada rumo ao sol poente da minha existência. Já bastavam tantas outras decepções com que a vida me surpreendeu...

José Coelho