Foi conturbada e algo estranha para mim
a época que se seguiu após o regresso da guerra. Estava em curso a mudança de
regime e a esmagadora maioria da população não tinha conhecimento de quase nada
do que se passava na capital, em tempo real. Nos meios rurais o dia começava
cedo, o trabalho era duro, o cansaço aconselhava a deitar cedo, as notícias
eram escassas e por vezes mal entendidas. De vez em quando havia sessões de
esclarecimento nas salas públicas onde vinham oradores com discursos inflamados
de acordo as convicções pessoais de cada um deles. Quem os ouvia, a maior parte
das vezes, em vez de ficar mais esclarecido, ficava ainda mais confuso.
Mesmo assim começaram a esboçar-se as tendências que foram perdurando através das décadas e se têm mantido até hoje. Os “partidos dos pobres” eram os da esquerda. Os “partidos dos ricos” eram os da direita. Quem manifestasse simpatia pelas políticas de esquerda era sumariamente apelidado de comuna pelos que eram contra. Os opositores antiesquerdistas mais radicais afirmavam mesmo que comunistas, socialistas e seus satélites, eram todos farinha do mesmo saco. Isso não impediu contudo apesar de tanta oposição que fosse nesse grupo que se alinhasse a maioria dos trabalhadores das casas agrícolas da região assim como os operários fabris. Poderia até acrescentar que os que pretenderam dividir essas classes obtiveram o efeito contrário.
Uniram-nas ainda mais.
Desde sempre o fruto proibido foi o mais apetecido.
Por seu lado a tendência da outra parte, a da direita, na qual se incluíam os “donos-disto-tudo” daquele tempo mais os seus inúmeros seguidores, era apelidada de fascista e reacionária, a qual, entretanto, lá foi também contra ventos e marés vingando, apoiada pelos que iam comer à sua mão por conveniência, subserviência ou lambebotice. E porque não, pelos que simpatizavam realmente mais com a autoridade ditatorial recentemente deposta pela revolução, do que com os condenáveis excessos que em nome da liberdade se verificavam um pouco por toda a parte.
Consequência de tudo isso, instalou-se um clima esquisito pelas pequenas e até aí pacíficas comunidades como a da Beirã, um alimentar de estranhas hostilidades inclusivamente entre vizinhos e amigos de sempre, que pelo simples facto de uns acharem que o partido A com o qual simpatizavam era melhor que o B que os outros defendiam, romperam amizades de uma vida inteira, parentescos próximos até, em nome de ideologias políticas que ninguém conhecia ou entendia minimamente, mas às quais aderiam cegamente, escoiceando, mordendo e arranhando quem se lhe opusesse.
Aconteceu comigo também infelizmente como não podia deixar de ser. Não vou mencionar nomes de quem injusta, traiçoeira e cobardemente me prejudicou, porque eles sabem quem são se lerem o que eu escrevo e também porque tudo isso se passou há décadas. Muita água correu por debaixo da ponte levando com ela, sobretudo, a profunda mágoa que tudo isso me causou. Só a sua memória, qual auréola de nódoa difícil, será perene e se manterá para sempre no meu coração. Perdoar é uma coisa, esquecer é outra, bastante diferente.
Além disso a Vida se encarregou-se de fazer justiça e de colocar cada coisa no seu lugar. Deus escreve direito por linhas tortas e a situação deu uma volta de tal ordem que poucos anos depois era eu quem tinha uma vida estável, serena e bem sucedida, enquanto a alguns desses detratores da minha integridade de carácter a Vida puxou o tapete debaixo dos seus pés e deixou-os sem chão. E sem conseguirem agarrar-se ao que quer que fosse para se ampararem, bateram dolorosamente com o cu no chão.
Não por que eu lhes tivesse desejado tal sorte, muito pelo contrário. Apesar das suas injustas atitudes para comigo, compadeci-me deles no silêncio do meu coração de amigo que, apesar de tudo, nunca deixei de ser.
A segurança de me sentir finalmente em casa, o carinho da família, dos vizinhos, dos amigos e da namorada com quem já decidira casar, estavam lentamente a serenar a instabilidade interior que a guerra me causara, apesar de só eu mesmo saber que nunca mais voltaria a ser aquele jovem despreocupado e feliz que fora antes de para lá ir. Não tenho qualquer dúvida que naquela imensidão da floresta do Maiombe foi onde tive o meu encontro pessoal e íntimo com Deus. Talvez nunca consiga explicar quando, como e porquê, mas que foi ali que aconteceu, foi, sim! É uma certeza absoluta.
Foi onde aprendi a duras penas o quanto a vida é breve e fugaz, para nos darmos ao luxo de a desperdiçar de qualquer maneira, na igreja da Missão do Belize durante longuíssimas madrugadas quando da floresta ecoavam miríades de vozes de animais selvagens num verdadeiro hino à vida, enquanto eu e os meus camaradas nomeados de guarda de honra, perfilávamos incrédulos, com o coração apertado, a ladear na posição de sentido as urnas de camaradas que poucas horas antes nos tinham feito companhia mas agora ali jaziam estropeados dentro daqueles caixões.
Por essas e por outras, apesar de estar já em casa em segurança, ainda havia no meu coração demasiadas lembranças e marcas que me impediam de comungar da euforia geral reinante ou de me interessar minimamente por qualquer atividade política, além de que, honestamente, não sabia nem pouco mais ou menos o que era "aquilo" de esquerda, direita ou centro, limitando-me a ouvir uns e outros para tentar entender a nova realidade e colaborar no que me fosse solicitado, sem qualquer outra intenção que não fosse a de ajudar tudo e todos...
José Coelho in Histórias do Cota