No dia 16 de Julho do presente ano irão cumprir-se oitenta anos que esta Ilustre Senhora e o Seu Divino Filho vieram morar definitivamente para a minha Beirã. Pessoalmente eu conheci-a há 70, mas só há 65 comecei a trabalhar como voluntário na Sua Casa, investido nas funções de acólito do padre Joaquim Caetano a quem até hoje me liga um vínculo muito forte de respeito e amizade, pese embora ele já não se encontre entre nós. Foi também a sua sábia bondade e exigente postura que me ensinou a ser um homem de bem e ajudou a formar o meu caráter, a par dos meus pais e avós.
Estou-lhe por isso muito grato e lembrá-lo-ei enquanto viver, da mesma forma que nunca esqueço quem me concebeu e criou.
A Vida levou-me ainda muito jovem para longe de casa e desta segunda Mãe por alguns períodos mais ou menos longos. Ainda assim, só os 8.000 km de distância resultantes da mobilização para o outro lado do mar me impediram de estar presente no Seu Dia 16 de Julho, naqueles dois longuíssimos anos de 1972 e 1973. Contudo nunca de mim se separou, quer no íntimo do meu coração e saudade, quer porque andou sempre no meu bolso de dia e de noite na forma de uma estampa de cartolina plastificada que desde então me acompanha já meio desfeita pelo uso e enorme quantidade de tempo que entretanto passou. Por Ela e por mim.
Nunca, mas nunca mesmo, deixei de A ir visitar sempre que pude. Muitas vezes Lhe fui pedir conselho, ajuda, ou apenas paz para o espírito, em momentos menos bons. Todos ou quase todos os dias Lhe agradeci e continuo a agradecer as bençãos que sempre senti d'Ela emanarem na minha direção. Algumas vezes também "discuti" intimamente com Ela por achar que algo não estava a ser bom ou justo, comigo ou com os meus. E sempre, mas mesmo sempre, pedi perdão logo em seguida pela ousadia e falta de fé. Melhor que ninguém Ela sabe que eu às vezes sou rabugento e difícil de aturar. Sei que me perdoa porque é Senhora e Mãe.
E também sabe que não há humanos perfeitos.
Somos hoje quase inseparáveis os dois.
Desde que em 1993 regressei definitivamente a casa, nunca mais arredei pé de perto Dela e tenho-me esforçado por dar o meu melhor, quer na dignificação das celebrações litúrgicas que se desenrolam aos Seus pés nas funções de salmista, de leitor, ou integrado no coro paroquial, quer nas funções de mais responsabilidade no CEP a que fui chamado desde 2003. Estou por isso muito em paz e olho de coração tranquilo para o sereno rosto que docemente me contempla lá do alto. Porém, como em todo o resto desta aldeia, também ali se sente já o rarear da presença humana quer nas celebrações quotidianas quer nas celebrações festivas que antigamente juntavam em seu redor centenas de crentes.
Parece que um vento ruim passou por aqui e tudo levou com ele. Às vezes, em dias mais inquietos, preciso de ir ter com Ela. Porque tenho a chave da porta e porque infelizmente deixou de ser seguro mantê-la aberta para que pudesse livremente entrar quem quisesse ir rezar a qualquer hora, como antes. Entro sozinho e fico longos momentos em silêncio e mudas preces, bastando a proximidade daquele tranquilo olhar para que a paz desça em catadupa sobre mim.
Não sou de todo indiferente à presença de Jesus Sacramentado e sei, porque me foi profusamente ensinado em muitas horas de formação cristã nos últimos anos, que, em qualquer templo onde esteja presente o Santíssimo é Ele que deve ser sempre adorado e exaltado antes de qualquer outra presença divina, seja a Sua Mãe Santíssima, seja qualquer outro Santo ou Beato. Porém e pese embora todos esses ensinamentos, o Senhor que me perdoe - e sei que perdoa - quase todos nós ao entrarmos na igreja damos de caras com o terno olhar da Virgem do Carmo e não conseguimos - por mim deduzo - pensar primeiro no Senhor Jesus Sacramentado que como Ela ali está presente no sacrário.
Não sei se mais alguém se atreve a assumir esta inofensiva inversão de prioridades na hierarquia divina. Mas eu assumo-a sem receio de ofender a Deus pois tenho consciência que Ele entende a ligação umbilical de quase todos os Beiranenses com a sua Padroeira. Escrevi no início que ando por ali há já 65 anos. É de facto muito tempo. A minha geração que em 1958 enchia o templo de orações, de vida e de atividades, partiu já quase toda por haver terminado o seu percurso terreno. Não estará por isso muito distante também a minha vez de ir ter com todos eles.
É absolutamente normal pois o tempo que tudo nos dá, também tudo nos tira. A seu tempo e porque somos pó, ao pó regressaremos. Sem dramas e sem espantos. Cumpre-se apenas e naturalmente o ciclo de cada vida.
Foi sempre para mim de todo impensável que um dia restaríamos este quase insignificante número de residentes devotos aos pés da Virgem do Carmo, porque outro número infinito deles tiveram de partir, de ir embora, de deixar a aldeia para procurarem trabalho e organizarem de novo as suas vidas, bem como as vidas das suas famílias, longe da Beirã para sempre. Alguns, mas também já cada vez menos, cá vão regressando ano após ano, cada 16 de Julho, o Dia da Padroeira. Participam na Eucaristia ao meio dia, depois na Procissão pelas ruas da aldeia às nove da noite e regressam às suas vidas e residências até ao ano seguinte.
Há quem nunca mais cá tivesse voltado.
José Coelho
Nota:
O poster que ilustra este escrito foi da autoria do reverendo Pároco e meu digníssimo Amigo Pe. Luís Ribeiro - hoje já falecido - por ocasião do 70º Aniversário da Inauguração da Igreja Paroquial de Nossa Senhora do Carmo - Beirã, que me o ofereceu em mão no dia 16.07. 2013. Paz à sua alma.