segunda-feira, 1 de maio de 2017

Coisas q'escrevi...

O posto onde todos estes factos aconteceram - Desconheço o autor da foto


Honras de ordenança (Mas não só)


Para encerrar a já longa narrativa da minha vida naquele posto não quero deixar para trás a atitude do então muito melindrado cabo comandante que, logo no dia a seguir à “briga” e numa atitude completamente inédita, me nomeou na escala de serviço de ordenança para sair com ele a pé em ronda às patrulhas após o almoço.

No posto tudo tinha voltado já à normalidade. Achei estranho o facto de o ordenança ser eu porque nunca o fora, já que por norma era sempre nomeado um camarada condutor e as rondas feitas de jipe pois os cabos (co)mandantes de posto desse tempo nunca andavam a pé. Era mesmo um estatuto deles!

Saímos então naquela tarde à hora escalada e não sei por que carga d’água pela porta das traseiras do posto. O cabo de metralhadora a tiracolo como era protocolar por ser graduado e eu com a velha mauser ao ombro em direção à Corredoura de São Roque e dali pela azinhaga bordejada de castanheiros que rumava para a Quinta do Prado. Muito amável e estranhamente atencioso para quem tratava quase sempre os guardas mais novos como se fossem seres insignificantes.

- Hum! Aqui há gato outra vez! Pensei.

- E não me enganei.

Às páginas tantas o cabo tossiu para afinar a garganta e pediu-me num tom matreiro muito cúmplice e a modos que confidencial:

- Agora que já ninguém nos ouve o senhor Coelho vai-me contar todas as coisas que o senhor (…) anda a dizer de mim! Nunca pensei que ele fosse assim, ó senhor Coelho! Tal é aquele traste?

Olhei para ele sem qualquer constrangimento e respondi-lhe com a maior franqueza.

- Não, nosso cabo! Não vou dizer-lhe mais nada. E ontem só me referi ao que esse camarada diz de si porque o senhor o estava a encobrir depois de ele me ter difamado. E ao encobri-lo, o senhor estava a fazer-me passar a mim por parvo.

- Ele diz de si é verdade porque eu não sou mentiroso. Mas também não sou de intrigas. E se o senhor quer saber tudo é muito fácil. Mande reunir o efetivo do posto uma manhã ou uma tarde destas e faça essa pergunta que me fez agora a mim a todos os outros porque o que eu ouço e o que eu sei todos os meus camaradas ouvem e sabem também. Se eles assim o entenderem poderão contar-lhe tudo na presença do visado como eu fiz ontem porque assim se deve fazer para não sermos todos iguais…

Não percebi se foi para mudar de tática ou se foi por ter ficado convencido do meu rotundo “não” ao seu convite de promoção a “bufo”, o cabo comandante após proferir um "acho que você tem razão" mudou de tema e começou a elogiar as minhas “grandes qualidades” como homem da guarda apesar de ser ainda tão novo. Que eu era assim, que eu era assado, que as pessoas na vila me tinham já um grande respeito e que isso era muito bom sinal. E mais isto, e mais aquilo…

Não gostei. Não gostei mesmo, nem me senti nada lisonjeado com tal atitude. Era graxa barata. Hipocrisia pura. Detesto essa forma de relacionamento profissional de tal modo que nunca a pratiquei, nem enquanto subordinado para com os meus comandantes, nem mais tarde já como comandante para com os meus subordinados.

Sempre entendi que um homem é um homem e que deve por isso empenhar-se em fazer bem feito tudo aquilo que é competência sua. Deve ainda também assumir imediata e responsavelmente as consequências de tudo quanto faz e diz. E se fez bem feito deve sentir apenas uma saudável e justa satisfação por ter agido de acordo com a sua obrigação. Mas se por lapso fez mal feito, deve em seguida e mal se aperceba do erro cometido ter a humildade de o reconhecer e se possível corrigir de imediato. Seja qual for a sua posição na vida.

Tal máxima em meu entender é universal, aplicável a qualquer cidadão do mundo e em todos os níveis da sociedade, com muito maior ênfase, dever, obrigação e responsabilidade para todos quantos detêm poderes de governo, de direção, de comando ou de chefia.

Para ser um homem não basta cortar a barba ou mijar de pé. Ser um homem tem de facto e no meu entender muito mais que se lhe diga. Tenho plena consciência de que não sou perfeito mas tenho contudo também a firme convicção de que todos os dias da minha vida procurei nortear a minha conduta pelos princípios e valores que me foram transmitidos desde o berço, e que, graças a isso, soube agir sempre de forma responsável em tudo quanto fiz ou disse. Até quando a minha dignidade e paciência foram levadas ao extremo do aceitável.

Tudo quanto o meu comandante de ronda e de posto não prativava quase sempre e muito menos ali, naquele preciso momento. Havia uma cruel mentalidade de princípios nesse tempo, um estatuto estranhamente rígido, desumano e desadequado. Um cabo comandante de qualquer posto territorial era de maneira geral um acérrimo praticante e defensor do quero, posso e mando, com um estatuto de quase-general. Aliás, eram mesmo zombeteiramente apelidados pelos efetivos que comandavam de “generais de província”.

Por sua vez isso originava em alguns dos guardas mais antigos, com algumas exceções obviamente, uma mentalidade prepotente. A velhice era também um posto. Mas um posto sem qualquer controlo e em que cada um exercia como lhe apetecia e conforme era seu timbre. Recordo por exemplo um dos meus antigos comandantes de patrulha – da Abegoa - Marvão – que “adorava” “judiar” com os mais novos mas que também se enganou quando bateu à minha porta.

De patrulha aos campos a pé pelos giros mais longos, tinha a “balda” de caminhar em passo acelerado, quase a correr, para atingir a “ponta” do giro 7 ou 8 quilómetros distante do posto e cujo percurso era calculado para fazer em 4 horas na ida e outras 4 no regresso mas que ele fazia  apenas em hora e meia pelo prazer de ver o mais novo cansado, a transpirar, aflito com as botas novas a magoar-lhe os pés ou sem saber ajeitar no ombro da forma mais cómoda o “empecilho” da pesada espingarda mauser.

No dia que me fez isso a mim no giro do Barregão e Atalaia acompanhei-o naquela marcha acelerada durante dois ou três quilómetros sem nada dizer. Quando me cansei abrandei pura e simplesmente o passo para uma marcha normal continuando na minha atitude de nada dizer.

Ele afastou-se umas centenas de metros até que por fim abrandou, esperou por mim e vociferou-me asperamente que eu tinha que o acompanhar porque a patrulha era a dois.

Tranquilamente, sem me atemorizar com o seu tom agressivo, respondi-lhe:

- Pois é nosso pronto, mas também temos oito horas para a fazer. Se você tem pressa vá andando que eu sei o giro e não tenho medo de o fazer sozinho…

Que remédio teve ele senão caminhar ao meu ritmo e foi se quis! Nunca mais piou no resto da patrulha e também nunca mais cometeu aquela proeza comigo. Não nos dávamos mal mas também nunca fomos grandes amigos apesar de sermos os dois do termo de Marvão. Assim me defendi sempre e exigi o respeito do restante efetivo daquele posto até algum tempo depois concorrer ao curso de promoção a cabo que tive a sorte e o privilégio de conseguir superar.  Mas esse relato fica para um próximo capítulo…


José Coelho in Histórias do Cota