O posto onde todos estes factos aconteceram - Desconheço o autor da foto
Honras de ordenança (Mas
não só)
Para
encerrar a já longa narrativa da minha vida naquele posto não quero deixar
para trás a atitude do então muito melindrado cabo comandante que, logo no dia
a seguir à “briga” e numa atitude completamente inédita, me nomeou na escala de
serviço de ordenança para sair com ele a pé em ronda às patrulhas após o
almoço.
No
posto tudo tinha voltado já à normalidade. Achei estranho o facto
de o ordenança ser eu porque nunca o fora, já que por norma era sempre
nomeado um camarada condutor e as rondas feitas de jipe pois os cabos (co)mandantes
de posto desse tempo nunca andavam a pé. Era mesmo um estatuto deles!
Saímos então naquela tarde à hora escalada e não sei por que carga d’água pela porta das
traseiras do posto. O cabo de metralhadora a tiracolo como era protocolar por
ser graduado e eu com a velha mauser ao ombro em direção à Corredoura de São
Roque e dali pela azinhaga bordejada de castanheiros que rumava para a Quinta
do Prado. Muito amável e estranhamente atencioso para quem tratava quase sempre
os guardas mais novos como se fossem seres insignificantes.
-
Hum! Aqui há gato outra vez! Pensei.
-
E não me enganei.
Às
páginas tantas o cabo tossiu para afinar a garganta e pediu-me num tom matreiro
muito cúmplice e a modos que confidencial:
-
Agora que já ninguém nos ouve o senhor Coelho vai-me contar todas as coisas que
o senhor (…) anda a dizer de mim! Nunca pensei que ele fosse assim, ó senhor
Coelho! Tal é aquele traste?
Olhei
para ele sem qualquer constrangimento e respondi-lhe com a maior franqueza.
-
Não, nosso cabo! Não vou dizer-lhe mais nada. E ontem só me referi ao que esse camarada
diz de si porque o senhor o estava a encobrir depois de ele me ter difamado. E
ao encobri-lo, o senhor estava a fazer-me passar a mim por parvo.
-
Ele diz de si é verdade porque eu não sou mentiroso. Mas também não sou de
intrigas. E se o senhor quer saber tudo é muito fácil. Mande reunir o efetivo
do posto uma manhã ou uma tarde destas e faça essa pergunta que me fez agora a
mim a todos os outros porque o que eu ouço e o que eu sei todos os meus camaradas
ouvem e sabem também. Se eles assim o entenderem poderão contar-lhe tudo na
presença do visado como eu fiz ontem porque assim se deve fazer
para não sermos todos iguais…
Não
percebi se foi para mudar de tática ou se foi por ter ficado convencido do meu
rotundo “não” ao seu convite de promoção a “bufo”, o cabo comandante após
proferir um "acho que você tem razão" mudou de tema e começou a
elogiar as minhas “grandes qualidades” como homem da guarda apesar de ser ainda
tão novo. Que eu era assim, que eu era assado, que as pessoas na vila me tinham
já um grande respeito e que isso era muito bom sinal. E mais isto, e mais
aquilo…
Não
gostei. Não gostei mesmo, nem me senti nada lisonjeado com tal atitude. Era
graxa barata. Hipocrisia pura. Detesto essa forma de relacionamento
profissional de tal modo que nunca a pratiquei, nem enquanto subordinado para
com os meus comandantes, nem mais tarde já como comandante para com os meus
subordinados.
Sempre
entendi que um homem é um homem e que deve por isso empenhar-se em fazer bem
feito tudo aquilo que é competência sua. Deve ainda também assumir imediata e
responsavelmente as consequências de tudo quanto faz e diz. E se fez bem feito
deve sentir apenas uma saudável e justa satisfação por ter agido de acordo com
a sua obrigação. Mas se por lapso fez mal feito, deve em seguida e mal se
aperceba do erro cometido ter a humildade de o reconhecer e se possível corrigir
de imediato. Seja qual for a sua posição na vida.
Tal
máxima em meu entender é universal, aplicável a qualquer cidadão do mundo e em
todos os níveis da sociedade, com muito maior ênfase, dever, obrigação e
responsabilidade para todos quantos detêm poderes de governo, de direção, de comando ou de chefia.
Para
ser um homem não basta cortar a barba ou mijar de pé. Ser um homem tem de facto
e no meu entender muito mais que se lhe diga. Tenho plena consciência de que
não sou perfeito mas tenho contudo também a firme convicção de que todos os
dias da minha vida procurei nortear a minha conduta pelos princípios e valores que
me foram transmitidos desde o berço, e que, graças a isso, soube agir sempre de
forma responsável em tudo quanto fiz ou disse. Até quando a minha dignidade e paciência
foram levadas ao extremo do aceitável.
Tudo
quanto o meu comandante de ronda e de posto não prativava quase sempre e muito menos ali, naquele preciso momento. Havia uma cruel
mentalidade de princípios nesse tempo, um estatuto estranhamente rígido, desumano
e desadequado. Um cabo comandante de qualquer posto territorial era de maneira
geral um acérrimo praticante e defensor do quero, posso e mando, com um
estatuto de quase-general. Aliás, eram mesmo zombeteiramente apelidados pelos
efetivos que comandavam de “generais de província”.
Por
sua vez isso originava em alguns dos guardas mais antigos, com algumas exceções
obviamente, uma mentalidade prepotente. A velhice era também um posto. Mas um
posto sem qualquer controlo e em que cada um exercia como lhe apetecia e conforme
era seu timbre. Recordo por exemplo um dos meus antigos comandantes de patrulha
– da Abegoa - Marvão – que “adorava” “judiar” com os mais novos mas que também
se enganou quando bateu à minha porta.
De
patrulha aos campos a pé pelos giros mais longos, tinha a “balda” de caminhar
em passo acelerado, quase a correr, para atingir a “ponta” do giro 7 ou 8 quilómetros
distante do posto e cujo percurso era calculado para fazer em 4 horas na ida e
outras 4 no regresso mas que ele fazia apenas em hora e meia pelo prazer de ver o
mais novo cansado, a transpirar, aflito com as botas novas a magoar-lhe os pés
ou sem saber ajeitar no ombro da forma mais cómoda o “empecilho” da pesada
espingarda mauser.
No
dia que me fez isso a mim no giro do Barregão e Atalaia acompanhei-o naquela
marcha acelerada durante dois ou três quilómetros sem nada dizer. Quando me
cansei abrandei pura e simplesmente o passo para uma marcha normal continuando
na minha atitude de nada dizer.
Ele
afastou-se umas centenas de metros até que por fim abrandou, esperou por mim e vociferou-me
asperamente que eu tinha que o acompanhar porque a patrulha era a dois.
Tranquilamente,
sem me atemorizar com o seu tom agressivo, respondi-lhe:
-
Pois é nosso pronto, mas também temos oito horas para a fazer. Se você tem
pressa vá andando que eu sei o giro e não tenho medo de o fazer sozinho…
Que
remédio teve ele senão caminhar ao meu ritmo e foi se quis! Nunca mais piou no
resto da patrulha e também nunca mais cometeu aquela proeza comigo. Não nos
dávamos mal mas também nunca fomos grandes amigos apesar de sermos os dois do
termo de Marvão. Assim me defendi sempre e exigi o respeito do restante efetivo
daquele posto até algum tempo depois concorrer ao curso de promoção a cabo que
tive a sorte e o privilégio de conseguir superar. Mas esse relato fica para um próximo capítulo…
José
Coelho in Histórias do Cota