No meu canto a recordar e escrever esta e outras histórias
A despromoção dos generais
(de-província)
No
momento em que assumi o comando do posto de Nisa dei início ao cumprimento dessa missão de uma forma totalmente
diferente daquela que conhecera e me fora imposta pelos comandantes que
tivera até ali. Assumi de imediato a responsabilidade de mudar radicalmente a arcaica e
desumana escala do serviço diário que continuava a ser imposta em todos os
postos da secção, decisão controversa que inevitavelmente motivou reparos
de desagrado e manifesto escândalo contra mim nas reuniões mensais de comando que se seguiram, principalmente daqueles comandantes-caciques que não queriam perder o seu estatuto e privilégios de
generais-de-província.
Sabia por experiência própria o que era sair às dezoito horas para a
patrulha mas ter de comparecer no posto logo às nove da manhã, acabando por
fazer nas 24 horas de cada um desses dias e foram muitos, 15 injustas e desnecessárias horas consecutivas só
porque sua excelência o cabo comandante do posto assim o entendia. Mais injusto era ainda porque tais determinações não emanavam de cima por via da
cadeia de comando e eram pura e simplesmente impostas por cada comandante de posto a seu bel-prazer. Lixavam, alguns deles, muitas vezes, despudorada e impunemente, os militares com
quem simpatizavam menos para concederem benesses àqueles que mais lhes lambiam as
botas.
Há que dizê-lo com agrado e justiça que muito me valeu o incondicional apoio do meu comandante directo, um excelente senhor
oficial sensivelmente da minha idade que tornou ainda mais aliciante tomar as iniciativas que imediatamente ele homologava por comungar das minhas
ideias em agilizar e humanizar os horários e consequente desempenho do
serviço. Pude por isso colocar em marcha uma completa e irreversível mudança nos horários das patrulhas, escala
de serviço e administração do posto.
A
mais radical medida indiscutivelmente, foi a de acabar definitivamente com a
concentração do efectivo no posto entre as 9 e as 17. Cada militar passou a
comparecer nele todos os dias apenas a horas de se preparar para sair para o serviço
que tivesse escalado. Não foi um feito extraordinário mas foi o primeiro passo para erradicar aquele injusto, faccioso e incompreensível caciquismo há décadas instalado. Consequência imediata, as
coisas mudaram para melhor a nível de toda a secção, porque as alterações que
eu implementei em Nisa começaram a ter eco nos outros postos e os seus
militares, obviamente, pressionaram os seus comandantes para as obterem
também. E num curto espaço de tempo foi naturalmente sendo implementada a sua
generalização.
Embora
houvesse as NEP – Normas de Execução Permanente – e um Regulamento Geral
do Serviço da Guarda que determinava e agilizava procedimentos, a verdade era
que em cada unidade ou subunidade as coisas se processavam de forma diversa. Quando
alguém era colocado por transferência de um posto para outro, trazia sempre
consigo hábitos de serviço completamente distintos que tinha que colocar de parte
para reaprender novos procedimentos.
E
para tornar as coisas mais confusas também os tribunais nos complicavam
muito a vida. A título de exemplo a Secção de Nisa trabalhava com quatro
comarcas diferentes: A comarca de Castelo de Vide que abrangia a área do seu
concelho, o de Marvão e o posto de Santo António das Areias; depois a comarca
de Nisa que englobava os postos da sede de concelho, Tolosa, Alpalhão e
Montalvão; por sua vez o Posto de Gavião tinha uma parte que pertencia à
comarca de Ponte de Sor e a outra parte pertencia à comarca de Mação. Era um
pandemónio autêntico. Para a mesma situação, crime ou outra démarche qualquer,
os magistrados de Castelo de Vide exigiam um procedimento, os de Nisa outro, os
de Ponte de Sor outro, e os de Mação, um outro ainda! E a Guarda que remédio
tinha senão fazer como lhe era por eles superiormente determinado.
Por
sua vez os comandos das secções procediam em muitas situações de forma
idêntica à dos tribunais. Na resolução de um mesmo problema, em Portalegre fazia-se
assim, em Ponte de Sor fazia-se assado, em Nisa era frito, e em Elvas cozido.
Quando os militares dos postos se encontravam nas concentrações de instrução, era um autêntico quebra-cabeças, porquanto, ao conversarem sobre o seu dia-a-dia,
ninguém fazia igual ao outro e todos achavam que a sua era a melhor forma de
proceder.
Quando
dizíamos aos nossos instrutores de Direito Penal nos cursos de formação a
forma como se resolviam as coisas no serviço territorial, eles ficavam
boquiabertos. E incentivaram-nos sempre a não continuarmos tal filosofia por
ser absolutamente errada. A guarda tinha que evoluir, adaptar-se às mudanças e
cumprir as novas normas sob pena de algum dia alguém vir a ter problemas sérios
e depois não poder invocar as determinações
superiores na medida em que ordens mal dadas não devem ser cumpridas. Está escrito.
Tudo
isso me dava uma enorme segurança. Mas não só. O facto de ter
por superior directo aquele senhor oficial da minha idade já formado também na mesma
doutrina que me fora ministrada a mim, não tenho quaisquer dúvidas que terá sido meio caminho andado para a implementação daquelas
mudanças de que muito me orgulho até hoje por terem constituído o passo decisivo que tornou menos penoso e muito mais humano o serviço diário dos militares do posto
que eu comandava e que aos poucos foram sendo assumidas – que remédio – por
todos os outros.
É
certo que não fui eu quem inventou as novas regras. Mas fui eu que que não me deixei intimidar com a sua nada fácil implementação.
Houve muita gente avessa, houve mesmo camaradas que nas minhas costas distorciam
tudo e aconselhavam os outros comandantes de posto a não irem pelo caminho que
eu afirmava ser o correcto, insinuando, tendenciosamente, que tudo aquilo não
passava de modernices minhas, vaidades de sargento novato. Tive inclusive que
fazer cara a cara um reparo “curto e grosso” a um desses senhores apesar de ele ser mais
graduado que eu, porque, felizmente também, nunca me intimidei com divisas ou
galões por mais superiores que fossem, desde que estivesse seguro da minha
razão…
José
Coelho in Histórias do Cota