quinta-feira, 18 de maio de 2017

Coisas q'escrevi...

Hoje biblioteca municipal, em 1985 escola dos meus filhos
Foto by José Coelho - Abril 2017


Destino: Nisa


Quando regressei ao posto a que pertencia ainda e onde permaneci algumas semanas até à promoção a segundo sargento para a consequente nova colocação sentia-me a mais afortunada das criaturas. Nada me amedrontava quanto ao futuro. Tinha durante os três longos anos da formação meditado e absorvido cada conselho recebido e cada justo ensinamento ministrado, estando mentalmente disposto a segui-los na íntegra. Um curso de formação e promoção ao posto imediato forma essencialmente também cada instruendo no caminho da integridade de carácter e do respeito pelo cargo a desempenhar, sublinhando a cada passo que a melhor cultura é sempre a do exemplo. Sabia que não ia ser fácil. Maior graduação, maior responsabilidade. É a regra de ouro. Quem tem que comandar homens tem que permanentemente preocupar-se em ser o primeiro a cumprir.

Esforcei-me por não me deixar envaidecer com os elogios que agora por ali ia ouvindo vindos principalmente de quem antes me tinha algumas vezes dificultado a vida. Não podia haver prova mais evidente do cinismo oportunista de muitas pessoas que infelizmente existem em todos os lugares e em todas as profissões. Aliás quero até esclarecer que tratava com particular deferência aqueles de quem porventura tinha algumas razões de queixa porque entendia que essa era a melhor forma de lhes fazer perceber o quanto éramos diferentes. Os amigos, quando o são, não precisam de usar graxa. E  a vingança é uma arma que repudio e nunca utilizei na minha vida. Posso afirmá-lo de consciência tranquila. Se algo ou alguém me magoa ou desilude digo-lhe cara a cara o que tenho a dizer para me defender ou contra-atacar, faço e digo o que tenho a fazer e a dizer naquele momento e só naquele momento para logo a seguir me afastar definitivamente dessa pessoa sem quaisquer intuitos vingativos.

Entretanto as minhas relações pessoais com as autoridades civis da vila foram sempre de mútuo respeito e completa disponibilidade. Pude pessoalmente verificar, nessas semanas antes da promoção, os esforços que o então presidente da câmara de Castelo de Vide encetou junto de diversas instâncias quer da guarda quer mesmo do poder civil, para tentar que eu ficasse a comandar o posto local pois a minha forma de lidar com todas as solicitações do dia-a-dia tinham-me valido da parte dele alguma estima e consideração.

No jantar que ofereci a um restrito grupo de convidados quando fui promovido esse ilustre senhor presidente da câmara – figura muito conhecida e estimada ainda hoje na Vila – disse-me perante todos os presentes na sala que no dia seguinte ia tratar de alguns assuntos ao Ministério da Administração Interna em Lisboa e que esperava trazer de lá também já a garantia da minha colocação no comando do posto.

Embora não lhe tivesse podido dizer logo ali por ser um assunto de serviço restrito e reservado apenas ao meu conhecimento, eu já sabia que tal não iria acontecer porque os planos do comando territorial de Portalegre eram outros conforme já me tinha sido dado conhecimento e alguns dias depois se verificou.

Já era certo que ia ser colocado na companhia de Portalegre por ser também o segundo candidato melhor classificado da companhia, uma vez que o terceiro classificado já fora transferido para Lisboa em virtude se só haver duas vagas a preencher na nossa zona territorial. Afinal tinha valido a pena prescindir de umas quantas sessões de cinema e de umas “bejecas” nas esplanadas da Avenida da Liberdade para ficar a “marrar” nas salas de aula e a fazer revisões das matérias.

Poucos dias depois fui convocado para comparecer no comando da companhia a fim de receber a guia de marcha para a nova colocação como comandante de posto. Só havia duas vagas. Avis e Nisa. E  eu era o segundo classificado. Por isso cabia-me aceitar a hipótese que o outro camarada não escolhesse. Eram assim as regras. Acho que ainda hoje assim se mantêm. Só não foi decente sermos colocados sem opção de escolha por virtude da conveniência do serviço mas que nos tivessem feito preencher uma declaração a pedir a colocação naqueles dois postos sem dispêndio para a Fazenda Nacional, isto é, sem sermos ressarcidos das ajudas de custo a que tínhamos direito, em virtude de uma determinação do então comandante interino da Companhia de Portalegre que era ainda também o meu comandante de secção, e que era, cumulativamente, dos tais senhores "mandantes" que só coçava para dentro pois não prescindia de um só cêntimo se a ele tivesse direito.

Era o tal senhor que ia caçar e pescar dias inteiros em qualquer dia da semana mesmo sem estar de férias, mas exigia pontualidade e cumprimento de horários e das outras obrigações aos seus subordinados. Mas chegou ao topo da carreira sem qualquer entrave. A velha máxima do "quem manda, pode". Já os sargentos, os cabos e os soldados que comandava, poucos ou nenhuns louvou sequer porque se estava marimbando para esses reconhecimentos que eram justos e vulgares em todas as subunidades vizinhas, além de ajudarem muitas vezes na promoção ao posto imediato por mérito. Mas aquele senhor nunca tal pensou porque era incapaz de tirar os olhos do seu próprio umbigo. Já se reformou há muitos anos para descanso dos guardas de hoje a quem não desejo de modo nenhum que tenham alguma vez a infelicidade de terem por comandante alguém assim.

Voltando porém atrás e às nossas colocações, se tive algum azar na atribuição das ajudas de custo que me eram devidas por lei, tive contudo a sorte de me acompanhar um bom camarada que de imediato me concedeu o privilégio de escolher o posto que melhor jeito me desse em virtude de ele ser solteiro e não lhe fazer qualquer diferença ir para um ou para o outro. Esse camarada foi o meu companheiro de carteira durante os três anos que frequentámos os cursos, primeiro no de cabos, depois no de sargentos. Por isso não tenho qualquer dúvida em reconhecer que fui parar a Nisa graças à amizade e solidariedade desse companheiro que, generosamente, sabendo que eu era casado e tinha dois filhos pequenos, entendeu que seria muito mais fácil a minha malta adaptar-se a Nisa que ficava ali ao lado e muito perto do resto da família, do que adaptar-se a Avis já quase em Estremoz. E assim aconteceu. Lá fui eu então, com o coração cheio de esperança e com a cabeça a transbordar de ideias, ao encontro da minha nova vida na bonita e acolhedora vila de Nisa, repleta de gente boa...


José Coelho in Histórias do Cota