Os meus dois reguilas!
Saudades...
De volta ao meu aconchego
O
regresso a casa foi, como não podia deixar de ser, uma alegria. Terminava um
longo ciclo de ausência permanente do lar e da família. Os filhos tinham crescido
imenso durante aqueles três anos e tinha agora já dois homenzinhos em casa à
minha espera para fazermos os passeios de que tanto gostávamos a pé pelos
subúrbios da vila quando eu tinha tempo livre.
Como
sabia bem sentir-me definitivamente junto deles! A mais ninguém podia dedicar o
sucesso alcançado senão àqueles dois pequenitos pois fora a pensar neles que
arranjava forças para superar o desânimo que inúmeras vezes surgiu motivado
quase sempre por serem tão limitadas as minhas habilitações literárias e os curriculos
dos cursos serem tão complexos. Só por mera curiosidade vou tentar lembrar-me
da infinidade de disciplinas que os compunham.
Havia
a parte de educação física, ginástica, desportos e luta de defesa pessoal. Esta
era a meu ver a disciplina mais benéfica de todas porque ajudava a
descomprimir, a relaxar, a arejar a cabeça, cumprindo cabalmente a sua máxima:
Mente sã em corpo são.
Depois
a parte cultural que tinha português, francês, matemática, física e química,
ciências do ambiente, história universal, geografia, educação cívica e moral, tudo
de acordo com o programa oficial do 9º ano escolar civil vigente àquela época.
Seguia-se
a parte militar que versava sobre ordem unida executada com arma, sem arma e
descritiva, a lei da defesa militar, armamento, regulamento de disciplina
militar, regulamento de continências e honras militares, táctica de infantaria,
informação e contra-informação, topografia, transmissões e socorrismo.
Por
sua vez a parte técnico-profissional sobre a GNR (tinha que saber-se na ponta
da língua) versava sobre o estatuto dos militares da guarda, a lei orgânica da
guarda, o regulamento do serviço geral da guarda, inúmeras nep´s (normas de execução permanente), ordens de serviço e legislação interna diversa.
Finalmente
a parte técnico-profissional, a mais complicada de todas pela imensidão de
leis, decretos, decretos-lei e portarias com que este país se gere. Direito
penal, direito processual penal, código civil, constituição, lei da caça, lei
da pesca, lei do funcionamento dos estabelecimentos, lei dos jogos de fortuna e
azar, lei dos feirantes e vendedores ambulantes, lei das atividades económicas,
código da estrada, regulamento do código da estrada, regulamento de transportes
em automóveis (que parecia uma bíblia), lei eleitoral, trasladação de
cadáveres, lei dos incêndios florestais, leis dos fogos de artifício, lei das
armas de defesa pessoal, lei do transporte de explosivos e ainda mais algumas
que já não consigo recordar…
De
cada disciplina tínhamos duas provas escritas por cada período escolar, ou
seja, uma média de 120 testes por ano lectivo. Um perfeito cocktail de pilhas de nervos.
E a coroa de glória, aquela disciplina abstracta cuja nota nenhum de nós podia controlar e se chamava
“mérito pessoal” que só por si era eliminatória. Ou seja; um aluno podia ter dezoitos, dezanoves ou
vintes nos testes, podia ser um craque em atletismo ou um barra em todas as
disciplinas mas se tivesse menos de 10 valores a mérito era pura e simplesmente
eliminado sem hipótese de qualquer recurso.
Tal
nota era atribuída por cada um dos instrutores militares e professores civis que nos iam avaliando individualmente ao longo de todo o ano escolar preenchendo cada um deles umas folhas secretas próprias que traziam sempre consigo e nas
quais atribuíam a cada aluno uma nota de zero a vinte ao seu critério, tendo em conta a pontualidade, o
atavio pessoal, a compostura individual, o interesse manifestado nas matérias,
a educação e aprumo nas suas relações com os instrutores, a forma como se
relacionava com os outros alunos, enfim, uma autêntica espionagem ao nosso comportamento no dia a dia e cujo veredicto entregavam no final de cada período, na direção de
instrução.
Somadas as avaliações de todos os professores referentes a cada aluno – no mérito claro – e se o resultado final fosse inferior a 10, o mais certo que o visado podia contar era... Rua, que esta
casa não é tua. E de tal maneira aquela porcaria de avaliação era calculada que
nunca as notas máximas excediam uns míseros doze vírgula qualquer coisa. Treze a mérito era equiparado a um vinte nas outras disciplinas. Mas acho que
foi raro ou até mesmo inexistente, só não sei explicar porquê. Devia haver indicações
superiores nesse sentido ou o critério de avaliação seria muito exigente, não sei. Para agravar as coisas a nota de mérito somada com todas
as outras notas do curriculo é que fazia a nota final do curso.
Por isso, alunos que tinham médias de 17 ou 18 em muitas disciplinas, viam
a sua nota final descer subitamente para um 13 ou um 14.
No
meu diploma consta, como foi referido no texto anterior, a nota final de 12,39 muito próxima da nota final do curso de cabos que foi de 12,60. Julgo que estes
resultados serão reveladores do meu empenho que foi sempre o mesmo e por isso manteve
praticamente inalterado os resultados finais nos dois cursos de promoção. Com a
referida nota fiquei posicionado a meio da tabela classificativa, nem entre os
primeiros, nem entre os últimos. Acho que fiquei no lugar que me competia
porque não conseguiria de modo nenhum fazer mais nem melhor.
Mas
foi duro e complicado por ser demasiada matéria a decorar para os testes escritos que chegavam a ser dois por dia em vários dias da semana e muita a
exigência por parte dos instrutores, principalmente alguns dos oficiais mais
velhos famosos em todo o dispositivo por gozarem da fama e do proveito de fazerem
a vida negra aos alunos nos cursos. A pressão psicológica era tão negativa que o tal
cabo que ficou infelizmente famoso não a aguentou, passou-se dos carretos e transformou
a parada do quartel num lago de sangue com vários mortos e feridos, poucos meses
depois. Acho que só mesmo a partir daí as coisas no geral se humanizaram um
pouco, não apenas no Centro de Instrução da Ajuda, mas em toda a guarda, porque só
perante o funesto resultado de tamanho desequilíbrio mental toda a gente
começou finalmente a reflectir nos desumanos e desadequados métodos
disciplinares até então usados.
Felizmente
hoje não é nada assim e ainda bem, embora o currículo dos cursos mantenha mais
ou menos a mesma complexidade. Porém, os alunos têm também actualmente um nível de
formação académica muito superior, o que, só por si, é já uma enorme vantagem. Hoje a guarda tem nas suas fileiras e a fazer
patrulhas muitos e brilhantes jovens licenciados. Para todos esses jovens
ascender na carreira é quase uma obrigação porque a guarda carece e muito de
gente bem formada para que não se repitam nunca mais situações humilhantes,
desumanas e completamente injustificáveis, como aquelas a que eu fui submetido…
José
Coelho in Histórias do Cota