6º Curso de Formação de Sargentos 1983/85 - CI/GNR/AJUDA
Mudança de rumo
A vontade de ascender na carreira profissional contagiou vários camaradas do posto de
Castelo de Vide nos tempos que se seguiram. Em apenas dois anos, concorremos ao
curso de cabos cinco soldados, três dos quais se catapultaram em seguida para o
curso de sargentos.
Um
deles fui eu.
A
guarda estava muito deficitária de graduados porque a promoção ao posto
imediato implicava quase sempre a transferência de unidade e colocação em
cascos de rolha e o consequente afastamento da família por normalmente não ser
aconselhável a mudança de casa em virtude de os filhos estarem a meio dos seus
estudos nas escolas das zonas de residência, o que originaria imensos
transtornos. Além disso a diferença de ordenado por motivo da promoção não
justificava tais incómodos. Tendo ainda em conta que muitos militares demoravam
mais de dez anos a chegar novamente perto das suas famílias, era um risco que
muita gente se escusava correr.
Por
isso mesmo as vagas para cabo e sargento eram muitas e em 1982 entendeu o então
comandante geral proporcionar a quem quisesse arriscar algumas benesses muito
razoáveis e aliciantes. E foi assim que, provavelmente influenciados uns pelos
outros, dois dos militares mais antigos - um deles já com quarenta anos - e
três dos mais novos, decidimos concorrer.
Tal
foi o nosso empenho que passámos todos as provas de admissão. Meses
depois e sendo eu ainda soldado a meio do curso de promoção a cabo, abriu novo
concurso para admissão ao curso de sargentos. E uma das tais benesses que o
general comandante geral na altura concedeu, foi a de prescindir temporariamente
da cláusula que obrigava os candidatos a sargento a permanecerem um mínimo de
três anos no posto de cabo.
Estávamos
em Março e faltavam ainda três meses para o terminus do meu curso de cabos,
pelo que nem eu nem nenhum dos meus camaradas sabíamos ainda se conseguiríamos
chegar ao fim com aproveitamento porque estávamos sujeitos a chumbar em
qualquer das disciplinas, etapas ou objectivos, se porventura não fossem alcançados.
Eis
senão quando e por um novo despacho de carácter excepcional do então comandante
geral, o referido concurso de admissão ao curso de sargentos desse ano foi extensivo também aos candidatos que se encontravam na frequência do curso de
cabos e se sentissem com capacidade para prestar provas mesmo sem ter ainda
terminado o curso, tendo em conta que, na data prevista para início do de
sargentos em Outubro desse ano, supostamente já todos seríamos cabos.
A
maioria dos meus camaradas ficaram entusiasmadíssimos com o convite até porque
a maior parte deles tinham o 5º ou mesmo o 7º ano - equivalentes hoje ao 9º e ao 12º respectivamente - e eram as habilitações que nesse
tempo antecediam o ingresso ao ensino superior. Por isso não temiam as provas
escritas de admissão.
Já
para as provas físicas era bem mais complicado por terem fama de ser duríssimas
e a realizar numa unidade do exército estranha à guarda – a academia militar –
e metiam as costas para dentro a toda a gente pelo seu lendário grau de
dificuldade. Eram mesmo ali que tinham chumbado sempre a maior parte dos
candidatos aos cursos anteriores.
Eu
ouvia-os mas nem ousava alimentar ilusões. Tinha só a quarta classe do ensino
primário. A escolaridade mínima obrigatória. Apesar de ter alguma facilidade em
assimilar as coisas e não estar assim muito mal posicionado em termos de notas
na classificação geral do curso de cabos pois nos 94 instruendos eu estava no 48º
lugar que não era nada mau tendo em conta que a sua equivalência era a nível do
9º ano de então e tinha áreas que eu desconhecia totalmente mas com as quais me
tive que desenvencilhar; matemática, história universal, física e química,
ciências do ambiente, língua francesa, direito penal, civil e administrativo, além de outras mais de que nunca sequer ouvira falar.
Para
conseguir aguentar a pedalada tinha que estudar todas as noites duramente. Sete dias por
semana até às duas ou três da manhã enquanto aqueles que tinham outras
habilitações literárias arrumavam os livros às cinco da tarde quando terminavam
as aulas, tomavam o duchezinho da ordem, jantavam tranquilamente, vestiam-se “à
civil” e punham-se a milhas, a caminho da baixa lisboeta para se irem divertir.
Ao
contrário deles eu nem sequer aos fins-de-semana podia pousar os livros! Nas
viagens de comboio entre Santa Apolónia e Castelo de Vide e vice-versa,
sentava-me a ler e a fazer apontamentos todo o tempo que a viagem durava. Nos
sábados e domingos, em vez de dormir a manhã na cama como precisava e porque
tinha os filhos pequenos, levantava-me às seis da manhã – a minha
Maria é testemunha disso – para me fechar na sala a estudar sossegado e poder
concentrar-me antes de os miúdos acordarem e para poder depois dar-lhes também algum
miminho e atenção.
Voltando ao convite para o curso de sargentos, o bichinho da tentação para me aventurar e concorrer a sargento começou a minar o
meu espírito aventureiro. Se por um lado pensava que era areia demais para a
minha camioneta, logo a seguir o meu subconsciente respondia que nada perdia em
tentar. Se conseguisse, conseguia, se não conseguisse, pelo menos tinha
tentado. E se não aceitasse o desafio então é que nunca poderia saber o
resultado.
Para
ser justo devo referir ainda a impagável ajuda de muitos dos camaradas de
curso, daqueles que tinham mais habilitações e que tão generosa como
pacientemente nos explicavam, ensinavam e com isso muito ajudaram nos intervalos das aulas ou quando regressavam da borga à noite. E não só a
mim como também aos outros doze camaradas que como eu tinham só a quarta
classe e por isso tínhamos que “marrar” até às tantas.
Foi
imprescindível a sua ajuda tão generosa como louvável a todos os níveis se analisarmos
que naturalmente eles teriam muito mais vantagem em evitá-la por serem
candidatos como nós, e, por isso, quantas mais negativas nós tivéssemos, mais se
consolidaria a sua posição na classificação geral. Bons tempos da velha Guarda em que a
amizade e a camaradagem não era apenas retórica…
José
Coelho in Histórias do Cota