Colecção de estatuetas de minha propriedade
que decoravam há 30 anos o meu gabinete
Casa arrumada, mãos ao resto
No
Dia da Guarda - 3 de Maio de 1986 - num discreto gesto de gratidão organizei no
quartel um almoço comemorativo da efeméride e para ele convidei de novo todas
as entidades de todos os organismos públicos de Nisa ao qual eles compareceram
com excepção do Delegado de Saúde já não me lembro porquê mas que em sua
representação enviou um médico novo em Nisa, o qual curiosamente é não só uma
das melhores pessoas que conheço na minha vida como também um grande e leal
amigo para além de médico da minha família toda desde então e até hoje.
Foi
interessante ver a cara de espanto de muitos daqueles convidados que lá tinham
ido em visita de cortesia oito ou nove meses antes. O quartel estava, dentro do
possível, um brinco. Restaurado, pintado de fresco e a cheirar a asseio, nada
tinha agora a ver com aquele antro bafiento e semi ruinoso que tinham visto antes.
Continuava a ser um edifício velho e a avisar quem de direito que tratasse
urgentemente de providenciar um novo quartel, mas pelo menos aparentava alguma
dignidade.
Os
dois ex-comandantes, quer o da secção, quer o que me antecedeu no comando do
posto, não viam com muito bons olhos a celeridade como em meia dúzia de meses se
restaurara o velho edifício que pela sua indiferença quase fora deixado cair
para o chão, desculpando-se ambos com o pretexto de que deviam ter sido os
responsáveis a nível da guarda a preocuparem-se com a situação, mas também que não
tinham nada que andar a pedir favores à câmara municipal nem a ninguém.
Nada
disso me afectou. Diziam o que eles queriam e para mim era indiferente. Em boa
verdade eu previa que ia ter que passar ali um punhado de anos no comando do
posto e tinha resolvido as coisas à minha maneira, tendo agora o pessoal umas
instalações velhas mas decentes e com um mínimo de dignidade, assim como a
minha residência, ao contrário deles que só se tinham preocupado em tornar
decentes e confortáveis os seus quase inúteis gabinetes.
Soube
aos poucos que o meu excelentíssimo camarada me punha de rastos de tal modo que
numa jantarada de caçadores quando alguém dos presentes se referiu a mim como
seu substituto e sem ele imaginar que era um tio meu que assim com ele falava,
lhe respondeu com o seu habitual mau feitio que eu era um comuna e que nem
soldado da guarda deveria ter sido, quanto mais sargento!
Continuava
com o seu velho preconceito à mistura com a ruindade que o caracterizava mas que
nunca me intimidou, porquanto cada vez que experimentou medir forças comigo
querendo fazer uso da sua patente apenas dois degraus mais acima da minha, teve
sempre que morder a língua e recuar na atitude porque eu com a maior firmeza
lhe fazia saber que tanta obrigação tinha eu de o respeitar a ele como ele tinha de
me respeitar a mim e que se lhe era dado o poder de me chamar a atenção, a
mim também me era dado o poder de me queixar se ele ultrapassasse qualquer
limite. Desistiu pura e simplesmente porque acabou por entender que
comigo não fazia farinha e nunca levaria a melhor.
Entretanto
uma doença maligna da faringe ditou-lhe uma aposentação precoce que não
gozou porque faleceu meses depois. Encontrei-o casualmente certo dia no Centro
Clínico nas Janelas Verdes já bastante debilitado e muito sinceramente penalizou-me vê-lo assim pois apesar de me ter tratado tão incorrectamente sempre, nunca
lhe desejei nenhum mal. Desejava tão só e apenas que ele fizesse a sua vida e
me deixasse fazer a minha em paz.
Naquele dia assim que o vi dirigi-me
imediatamente a ele para o cumprimentar com a deferência que lhe era devida e
pude ver como os olhos se lhe humedeceram, não sei se pelo desespero de se ver
assim, se surpreso com o meu gesto manifestamente atencioso mas ao qual ele não
podia já responder porque tinha perdido definitivamente a voz, limitando-se por
isso a aceitar o meu cumprimento e apontar para a garganta onde era visível uma
enorme e recente cicatriz da intervenção cirúrgica a que tinha sido submetido
para extracção do grave tumor.
Recordo
muito bem aquilo que eu próprio senti ao vê-lo assim tão fragilizado, doente e
sozinho naquele enorme edifício, tão longe da família. Por essas e por outras
nunca me canso de pensar o quanto é incompreensível que andemos às turras uns
com os outros constantemente, quando a vida é tão imprevisível e de um
momento para o outro toda a nossa arrogância, força e energia, caiem por terra, atingidos por algo que nos vai minando e nos apaga em meia dúzia de dias. São as
lições que tenho aprendido incessantemente ao longo da minha vida e por isso
procuro, o quanto posso, viver em paz com toda a gente em meu redor, detestando
veementemente intrigas, ódios, desavenças e outras formas da evitável
infelicidade que tudo isso provoca sempre.
Quanto
ao senhor oficial e ex-comandante da secção, por ter ascendido ao cargo de
comandante da companhia, foi para a capital de distrito. Fazendo uso da sua nova
e superior patente, nunca perdeu oportunidade de me fazer sentir das mais diversas
e desagradáveis formas, o quanto detestava a minha falta de medo dos seus
dourados galões e a maneira decidida como eu, sem lhe pedir licença porque dela
não carecia, tinha restabelecido as relações de amizade entre a guarda e todos os
órgãos autárquicos ou públicos de Nisa sem qualquer complexo e sem medo de ser novamente
conotado como comunista, como eles me já tinham conotado uma vez.
Em
todo o meu percurso profissional e ao longo da minha carreira, desde o
primeiro momento que ascendi à classe de sargentos, fiz questão de pautar a
minha conduta por uma postura de respeito institucional para com toda a gente,
superiores ou inferiores hierárquicos, sem hesitar em assumir as minhas
responsabilidades, mas exigindo também e simultaneamente todos os meus direitos,
perante fosse quem fosse.
Nunca
me acomodei ao gabinete de comandante de posto. Permanecia lá apenas e só as
horas indispensáveis para atender os diversos afazeres que eram da minha
exclusiva responsabilidade, mas que, mal terminava, logo estava dentro de um
jipe para ir com os soldados e os cabos policiar os campos, as estradas, as
aldeias e outros sítios da área do posto que eram imensos e muito dispersos. E
muitas vezes também a pé, por caminhos e veredas, ao encontro das patrulhas, para, com os meus próprios olhos, conhecer as características daquele terreno onde
pontuavam hortas, bacelos, bardos e currais de gados, os quais de vez em quando eram
por ali visitados na calada da noite pelos amigos do alheio, para gamanço de
borregos, cabritos, vitelos, ou até mesmo sacas de azeitonas já colhidas, bem
como outros artigos variados.
Nunca
me senti o omnipotente figurão que só tinha que estar refastelado no conforto do gabinete, enquanto os subordinados patrulhavam ao calor e ao frio na rua. Muito pelo contrário.
Senti-me sempre e só apenas mais um, naquela grande e excelente equipa de trinta
e tal elementos do efectivo misto – infantaria e cavalaria – do posto, com a única diferença que eu é que
tinha que planear as estratégias de forma a ter toda a área à nossa
responsabilidade mais ou menos vigiada e sob controlo, dentro do possível.
Por
isso mesmo, todos não éramos demais...
José
Coelho in Histórias do Cota