sábado, 20 de maio de 2017

Coisas q'escrevi...

Primeiro acto público como cmdt do PTNisa - Condecorar um Soldado da Paz
(Os então Ministro Dr Miranda Calha e Gov. Civil Dr Casal Ribeiro presentes na cerimónia)


Quem se quer bem sempre se encontra!
(Vai lá vai)

O comandante de posto que eu ia substituir em virtude de ele ter sido nomeado para o curso de ajudantes, era o meu velho “amigo” sargento que no alistamento me tinha feito a vida negra e tratado abaixo de cão. Longe de me intimidar tal facto dava-me imensa força. Ia ser bom “esfregar” no seu nariz as minhas divisas de sargento, classe agora igual à dele. 

Nunca me passou pela cabeça hostilizá-lo ou usar de qualquer atitude menos correcta pois entendia que se entrasse por esse caminho estaria a imitá-lo, a ser igual ou pior que ele. Levava o meu coração em paz ainda que também cheio de determinação de não lhe permitir nem só mais um enxovalho. As coisas tinham mudado de figura. E se no alistamento tivera que ouvir e calar para não lhe dar azo a expulsar-me por rebeldia, agora as coisas piavam mais fino.
No fundo eu também entendia que ele era fruto da época obscura a que o 25 de Abril ditara o fim e tinha plena consciência que muita gente não se adaptara à mudança, que provavelmente não se adaptaria nunca. Mas o tempo do ouvir e calar para mim tinha terminado. 

Não sou de me meter em guerras mas tampouco as temi alguma vez. E nunca jamais ou em tempo algum eu iria permitir que um superior hierárquico, fosse ele um sargento mais graduado ou antigo, fosse ele um oficial de que patente fosse, me voltassem a enxovalhar ou a injuriar como aqueles dois o fizeram nos meus primeiros meses de guarda.
Jamais!
Não era vaidade, não era arrogância, nem sequer porque as divisas douradas que trazia agora nos ombros me tivessem subido à cabeça. Nada disso. Era a consciência plena de ter adquirido à minha esforçada custa todos os inalienáveis direitos de cidadão livre e responsável do meu país.
O tratamento que aquele senhor oficial comandante do pelotão e o agora meu camarada de posto me infligiram durante o alistamento fora, sem mais nem menos, sabia-o agora, um crime continuado de discriminação previsto na Constituição da República Portuguesa e que já em Janeiro de 1979 era punido pela legislação penal portuguesa.
Isso tinha aprendido na minha excelente e longa formação. E que, por me interessar tanto, estudei ao pormenor até o saber de cor e salteado, pedindo as explicações que julguei necessárias e tirando todas as dúvidas até à exaustão. E claro, aprendi. Como eu aprendi, para toda a minha vida!
Na minha nova função estava à minha espera uma tarefa gigantesca para os mais que limitados recursos de qualquer comandante de posto. Aquilo a que pomposamente chamavam de Comando da Secção Territorial de Nisa da Guarda Nacional Republicana era, em simultâneo com o Posto misto de Infantaria/Cavalaria, um casarão enorme praticamente em ruínas que não dignificava nem a Guarda, nem aqueles que, sendo comandantes e usufrutuarios directos das instalações, as tinham deixado chegar a tal ponto de degradação e ruína. A única dependência que ostentava alguma apresentação e conforto era, lamentavelmente, a que menos falta lá fazia. O gabinete do senhor oficial comandante da secção que pouco uso lhe dava, entretido permanentemente nos seus hobbies de pesca e caça, dia sim, dia sim.
O gabinete do comandante de posto também não era tão mau como as restantes instalações que albergavam quem ali trabalhava e tinha que permanecer, inclusivamente dormir alguns deles, diariamente. Os soldados e os cabos. A caserna era um tugúrio escuro e mal cheiroso quer pela proximidade da cavalariça, quer pelo desmazelo de conservação das paredes salitrosas, do sobrado todo partido e cheio de buracos por onde furtivamente pontuavam os ratos, para além das portas e janelas a cair de velhas e podres. Aquilo a que chamavam “a cozinha” era um compartimento sem luz natural iluminado por uma lâmpada suja e opaca de tantas cagadelas de moscas. O chão, os armários, a pia de pedra para lavar a louça, eram uma nódoa pegada de gordura entranhada com décadas de uso e desmazelo.
O posto de rádio era um anexo indecente para ser habitado por homens que ali tinham que permanecer 24 sobre 24 horas, 30 dias por mês. A arrecadação do material de guerra, era, a par do gabinete do senhor oficial, outra das dependências mais bem conservadas, quer em manutenção, quer em isolamento de humidades, pintura e arrumação. Pois! É que (se calhar, digo eu) as espingardas e as munições mereciam muito mais cuidados dos responsáveis pela sua conservação, do que os seres humanos que ali prestavam serviço permanentemente dia e noite de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro, ano após ano.
Mentalidades…
Por sua vez, a residência do comandante de posto, talvez por ter sempre uma senhora a cuidar dela, não estava suja. Mas estava tão velha, tão velha, tão necessitada de obras de restauro e conservação, que me recusei a ir habitá-la enquanto não tivesse as condições mínimas de habitabilidade e conforto.
Entretanto e para ajudar, as relações entre a Guarda e as restantes autoridades civis do concelho e comarca, eram de um quase confronto ou oposição mútuos. Os eleitos municipais eram da CDU, os tais famosos comunistas que o meu antecessor e agora camarada  de posto tanto odiava e hostilizava. Não havia, por isso, qualquer diálogo nem aquela colaboração e respeito institucionais mútuos que são normais entre todas as entidades públicas de qualquer concelho, seja qual for a cor política dos seus eleitos.
Não cabe à Guarda, nunca coube em tempo algum, hostilizar seja que entidade for, muito pelo contrário. Descobri ali e sem querer que aquele “ódio” que o meu ilustre camarada sargento me devotara no alistamento era exactamente o mesmo que devotava ao presidente da câmara de Nisa desse tempo e à maior parte dos nisenses que pública e manifestamente votavam CDU. Achava-se provavelmente um ser superior e distinto, não cabendo na sua iluminada mentalidade a nova pluralidade democrática.
Porém, com as outras entidades civis infelizmente, as coisas não estavam mais famosas, em termos de relacionamento com a Guarda local. Olhavam-nos de lado com pouca simpatia e ainda menos espírito colaborante.
Longe de me intimidar com tal panorama senti-me interiormente incentivado a mudar aquele estado de coisas até onde me fosse possível, ainda que com plena consciência que ia cutucar um ninho de vespas que tentariam ferrar-me pela ousadia. Sem nada dizer a ninguém porque sabia de antemão que não iria encontrar apoio interno por parte de quem deixara abandalhar aquilo tudo ao ponto em que se encontrava, tomei várias iniciativas que me pareciam prioritárias.
A primeira foi redigir um ofício timbrado oficial e endereçá-lo a todas as entidades locais. Presidente da Câmara Municipal, Juiz de Direito da Comarca, Delegado do Ministério Público, Chefe da Secretaria do Tribunal, Chefe do Serviço de Finanças, Delegado de Saúde, Gerentes das entidades bancárias, Bombeiros Voluntários e demais entidades públicas, a todos me identificando como o novo comandante do posto de Nisa e solicitando autorização para pessoalmente me ir apresentar e cumprimentar a cada um para me dar a conhecer, ao mesmo tempo que manifestava também toda a minha disponibilidade para uma estreita colaboração institucional dali em diante...

José Coelho in Histórias do Cota