segunda-feira, 22 de maio de 2017

Coisas q'escrevi...

A tomar café na novíssima sala de convívio do PTNisa após o almoço.
A minha mulher tinha ao colo o Rafael, filho de um dos guardas.


Ousadia para mudar


Foi uma enorme pedrada no charco! E um sucesso inesperado com o qual nem eu próprio contava. Sucessivamente, umas atrás das outras, todas as entidades me responderam quase no imediato, agradadas com a minha disponibilidade e abrindo as portas dos seus gabinetes para me receberem e melhor conhecerem. Parecia que toda a gente queria restabelecer a relação amigável e institucional que nunca deveria ter sido posta em causa. Virou até conversas de rua e de cafés que os guardas por ali captavam e me transmitiam com agrado.

E eu fui visitá-los a todos, à vez. Sem subserviência alguma, sem nunca deixar de frisar o prestígio da minha nobre instituição, a todos me apresentei com humildade, mas também com a dignidade que o meu cargo exigia. E de todos recebi uma palavra amiga, de incentivo e de boa amizade, em simultâneo com os parabéns pela minha iniciativa, seguido quase sempre de um “conte connosco”.

O primeiro e mais importante passo estava dado. Mas muito mais havia para fazer e eu não cruzei os braços nem me deixei adormecer à sombra dos elogios. Pelo contrário. Comecei a “chatear” quem podia dar-nos apoio para melhorar as condições de habitabilidade das velhas e decrépitas instalações. E para que percebessem a urgência em meter mãos à obra, nada melhor que convidar todas as entidades a visitarem o posto para que pudessem verificar com os seus próprios olhos a indignidade que era aquele edifício e as precárias condições que oferecia a quem necessitava de ali trabalhar para manter a ordem, a paz e tranquilidade públicas, em benefício de toda a comunidade.

Retribuí com a mesma abertura e cordialidade para com todas as entidades que não se fizeram rogadas e responderam ao meu convite. E uma vez ali, sem quaisquer complexos, mostrei-lhes tudo aquilo a que chamavam pomposamente o quartel da GNR da vila de Nisa. Evidentemente todos ficaram surpreendidos com tão avançado estado de degradação do edifício que pela sua aparência exterior denunciava de facto alguma velhice, mas não tanto como a do seu interior. Estando presente o senhor presidente da câmara municipal acompanhado de alguns dos vereadores, imediatamente apelei à sua sensibilidade para que, dentro daquilo que lhes fosse possível, me ajudassem no restauro das divisões mais carenciadas que infelizmente eram quase todo o edifício, pois sem a sua ajuda não seria possível avançar.

Numa resposta quase imediata uma equipa composta por pedreiros, carpinteiros e pintores, na semana seguinte “assentaram praça” no quartel e começaram a restaurar o mais urgente. O telhado que metia água e em alguns sítios ameaçava ruir. Foram substituídas quase todas as traves e barrotes, bem como centenas de telhas partidas causadoras de infiltrações. Depois foi a cozinha que levou azulejos brancos nas paredes, um armário moderno e lavável, um lava-louça inox e um chão de mosaicos, bem como uma adequada iluminação interior. O velho e sujo buraco escuro e gordurento transformou-se numa higiénica e funcional cozinha, indispensável aos militares que eram de longe e ali tinham que confecionar as suas refeições diariamente. E como estava ali mesmo ao lado, foi também completamente remodelado o posto de rádio que ficou muito mais digno e funcional. Depois, uma a uma, todas as dependências do velho edifício foram sendo restauradas a expensas exclusivas da câmara municipal de Nisa.

Adaptaram-se as divisões dentro do possível. Separou-se o posto da secção. Do lado direito ficou o gabinete do oficial comandante e a respectiva secretaria, do lado esquerdo o gabinete do plantão e o gabinete do comandante de posto e as restantes dependências afectas ao posto. Adaptou-se também um velho compartimento em frente á arrecadação do material de guerra que  conseguimos alindar usando para isso pouco mais que umas dezenas de rústicas tábuas costaneiras dos desperdícios da serração e cedidas gratuitamente que depois de devidamente aparadas dos lados e envernizadas fizeram uma acolhedora sala de convívio que servia simultaneamente para os dias de instrução semanal e para uso diário com uma bonita lareira feita de raiz para aquecer a lenha o ambiente nos dias frios de inverno, uns cómodos sofás e até mesmo também um pequeno bar para o qual a Delta nos cedeu uma máquina de café e onde se podiam tomar ainda algumas bebidas leves, sumos e aperitivos.

Construiu-se de raiz um corredor em tijolo para se poder atravessar todo o edifício sem ter que se passar pelo interior da caserna que entretanto foi também toda restaurada assim como a casa de banho anexa a ela que foi toda equipada com louças sanitárias novas, azulejos nas paredes e chuveiros de água quente. O velho piso de tábuas partidas e habitat seguro de ratos foi substituído por um bonito e funcional parquet de corticite lavável que deu logo um aspecto muito digno e acolhedor àquele compartimento, local de resguardo e de repouso por excelência para quem ali permanecia dia e noite por motivo de ter a sua residência e família  afastados e por isso só podia ir visitar na folga semanal. Era o mínimo dos mínimos que se lhes podia conceder. Condições dignas de higiene, conforto e privacidade.

Também a residência que me era destinada levou uma volta completa. A casa de banho só tinha uma sanita e um lavatório. Não tinha chuveiro nem banheira. Os meus antecessores deviam com certeza tomar banho num balde porque nem águas quentes canalizadas a residência possuía. Depois a instalação eléctrica era do tempo da guerra de catorze com aqueles tubos primitivos em chumbo a despegarem-se das paredes. Mais uma vez, a expensas da câmara municipal, tudo isso foi providenciado e consegui ao fim de um mês ter casa para habitar com um mínimo de condições. 

O único contributo da guarda em toda essa remodelação eram os dois militares que estando de piquete 24 horas consecutivas vestiam um fato de zuarte para auxiliarem os mestres da câmara naquilo que era necessário entre as oito e as dezassete, assegurando eu e o meu motorista tomarmos conta de todas as ocorrências que houvesse naquele período de tempo. Era fraco o contributo, mas era o possível e de muito boa vontade. Todo o efectivo se regozijava com aquelas obras de restauro que tardaram em chegar. Por isso, voluntariamente, cada um se prontificava para fazer o que sabia.

Os guardas electricistas ajudavam os elecrticistas, os guardas pedreiros auxiliavam os pedreiros, os guardas canalizadores idem idem, aspas aspas - porque os guardas são também grandes profissionais de todas essas especialidades que muitos desempenhavam antes de ingressarem na guarda - e aqueles que nenhum desses ofícios sabiam davam serventia onde era preciso. Seis meses depois o quartel de Nisa não parecia o mesmo. Gastou a câmara, nesse tempo - 1985-1986 - cerca de setecentos contos que hoje parece assim uma pequena quantia de dinheiro, mas que naquele tempo dava para pagar um ano de salários a qualquer funcionário público. E não se contabilizaram nesse montante as madeiras do telhado e as telhas porque foram recolhidas no estaleiro municipal e reaproveitadas de outros restauros de edifícios públicos, bem como muitos outros materiais sobrantes nessas mesmas condições e que foram utilizados no restauro do quartel sem ser necessário adquiri-los...


José Coelho in Histórias do Cota

Sem comentários: