Em 1961 eu era assim
Querida mãe,
Querido pai:
O tempo
passa sobre as lágrimas que choro, já nem cicatrizes tenho do que um dia me
feriu. E no entanto a memória. A cabra da memória.
Ninguém merece uma memória feliz.
E eu fui. E nós fomos. Felizes. A casa cheia
com a nossa alegria dentro. O quintal, o avô a contar mil e duas vezes as
histórias que já tinha contado mil e uma vezes, a avó sempre preocupada em
encher a mesa, os tios a dizerem que a vida custa. E custa, pai. E custa, mãe.
Ninguém merece uma casa vazia.
E os cheiros. Os cheiros não passam. Os
cheiros são a melhor forma de se sofrer. Cheiro a cozinha onde um dia a vida.
Onde um dia o sonho. Eu menino na cozinha cheia do avô, da avó e dos tios. Eu
menino a sonhar com eu grande, grande como os tios – «um dia vou ser rico e
comprar muitas coisas». Eu menino a querer crescer.
Ninguém merece um corpo que cresce.
E a perda. A puta da perda. A avó com um
cancro dentro. O avô a ceder a cada dia que a sua Maria se ia. E os tios e as
rugas. Todos a irem a cada dia em que eu crescia. E tudo morre quando nos
morrem os sonhos.
Ninguém merece ficar para além dos sonhos.
E já não há avó e já não há avô. Há o cheiro
da cozinha quente com os meus sonhos dentro. O cheiro do quarto onde me
escondia, debaixo da cama, para ver os adultos falar. As palavras novas,
palavras grandes, palavras feias. O abraço apertado do tio André – «estás a
ficar um mocetão, rapaz» – nas minhas costas de criança. A casa vazia com o que
sou dentro.
Ninguém merece sobreviver ao que mata.
E ter um pai e uma mãe. Só quando a casa se
esvazia é que se sabe o que vale um pai, o que vale uma mãe. E não interessa o
que foi, o que ficou por ser. Não interessam as palavras que um dia dissemos,
os erros que um dia não evitámos cometer. Não interessa a voz grossa do pai –
«tens de ser um homem a sério» – nem a dor muda da mãe. Não interessa o que se
perdeu quando se tem um pai e uma mãe para apertar. Ainda estamos, mãe. Ainda
estamos, pai.
Ninguém sabe o que é perder quando ainda tem
uma mãe e um pai para abraçar.
E enquanto tiver os vossos ombros para pousar
nenhuma lágrima morrerá solteira.
Pedro Chagas Freitas
- Prometo falhar.