Foto Pedro Coelho
Aprendi com o meu avô materno José Lourenço que a chegada das cegonhas no início do ano trás consigo um prenúncio meteorológico que reza assim:
"Pelo S. Brás, a cegonha verás. Se a não vires, o inverno vem atrás".
Sendo o dia de S. Brás a 3 de Fevereiro, quase no fim do inverno, se as cegonhas se atrasassem na chegada e é bem provável que tal fosse certo porque na natureza nada acontece ao acaso, isso indicaria que ainda estava para vir também grande invernada.
Hoje as coisas são um pouco diferentes e acontece um fenómeno invulgar que provavelmente não acontecia há 70 anos. Há cegonhas que já não migram e ficam por cá todo o ano. Porquê? Não faço ideia, mas provavelmente terá a ver com as mudanças climáticas ou com os invernos que não serão já tão agrestes como eram naquela época. Não são mesmo, porque eu recordo-me das semanas inteiras de chuva que tínhamos de ficar em casa sem podermos ir trabalhar para desespero das donas de casa que não tinham por isso nessas semanas chuvosas o dinheiro das jornas que pagariam a bucha da família.
Ainda assim e apesar de algumas por cá ficarem o ano todo, há casais vizinhos que habitam pelas redondezas da minha casa que já se andam a juntar para partirem. Costumo ouvi-las toda a primavera no seu chamamento mútuo a baterem os bicos no seu teca-teca-teca-teca monótono ou vê-las cruzarem o espaço num suave voo, ou ainda a passearem elegantemente pelas orlas dos ribeiros e barrocas em busca das rãs e cobras d'água com que se alimentam a e à prole que cresce no ninho.
Neste momento, todos estão já silenciosos e vazios.
Chegando Agosto é tempo de se organizarem em bandos para migrarem. Porquê Agosto ainda no pino do calor? Também não sei. O meu avô dizia que a viagem era muito grande e elas precisam de muitas semanas para chegarem ao seu novo destino. Talvez seja, mas também não deve ser indiferente a seca e a falta de água pelos regatos com a consequente escassez de alimento por estas zonas pacíficas onde nidificam em paz mas escasseia o resto.
As cegonhas fazem parte da minha vida por tanto ouvir falar nelas ao meu avô e não por me terem trazido no seu bico até ao colo da minha mãe, como traziam naquele tempo. Sendo um bebé sem sangue azul porque filho do António Pechorra da Vila, mais da Florinda do Matinho, fui contudo muito mais fino na escolha da viagem para nascer. Vim de comboio, em primeira classe, no Lusitânia-Expresso desde Madrid. Pelo menos foi isso que ouvi constantemente dizer à minha progenitora, enquanto ela viveu.
Que nasci assim que o Lusitânia entrou na Estação e era um colo cheio de gaiato, às cinco horas da madrugada daquele Março.
E mais dizia que eu tinha escolhido o "comboio dos ricos". É um bocado esquisito porque nunca tive manias de grandeza. Muito pelo contrário. Gosto mais do anonimato, das coisas simples, do silêncio e sossego da natureza. Espalhafato não é comigo. Mas pronto! Como tenho raízes espanholas quis fazer essa minha primeira viagem num comboio fino que vinha de Madrid.
E por falar nisso acode-me à memória outra deliciosa história a que assisti, protagonizada pelos meus dois queridos e saudosos progenitores.
Então, foi assim:
O meu pai sempre gostou muito do seu copito. De vinho ou de aguardente. De cerveja e outras bebidas, não. Foi sempre assim, até a sua saúde se deteriorar. Infelizmente para ele, um carcinoma na próstata afastou-o de todas e quaisquer bebidas nos últimos 14 anos da sua vida. Mas vamos à nossa história para terminar com um sorriso o texto de hoje, porque há memórias que merecem nunca serem esquecidas.
Vem a propósito de o Lusitânia ser um comboio dos ricos.
Naquele dia o meu pai chegou a casa atrasado e com "um grãozinho na asa". E a minha mãe estava já amuada porque estávamos todos sentados à mesa para jantar e ele nunca mais aparecia.
Chegou finalmente, eufórico e bem disposto. A minha mãe ministrou-lhe uma valente sentença, como de costume, mas também, como de costume, pouca mossa fizeram na boa disposição do infrator. A coisa que ele mais gostava na sua vida era ter a família toda reunida à sua volta, como naquele momento. Atrasara-se um pouco, mas nós já estávamos habituados. Quem parecia nunca ter sido capaz de se habituar a esses "deslizes" era a sua resmungona companheira.
Chegou finalmente, eufórico e bem disposto. A minha mãe ministrou-lhe uma valente sentença, como de costume, mas também, como de costume, pouca mossa fizeram na boa disposição do infrator. A coisa que ele mais gostava na sua vida era ter a família toda reunida à sua volta, como naquele momento. Atrasara-se um pouco, mas nós já estávamos habituados. Quem parecia nunca ter sido capaz de se habituar a esses "deslizes" era a sua resmungona companheira.
Nós compreendíamos, porque se calhar a pinga teria por lá alguns ossos ou espinhas e seria por isso que ele se atrasava.
Às páginas tantas, já farto de ouvir aquela sentença na nossa frente - coisa que ele não apreciava nada - olhou para a minha mãe e num inspiradíssimo discurso, atirou-lhe:
- Ó mulher, tens toda a razão, mas o que é que queres que te faça? Eu até me matava só para não te apoquentar mais! Mas... Tenho medo do comboio!
Foi gargalhada geral.
Porém, mais indignada ainda com a contundente ironia e num só fôlego, a tia Florinda retrucou:
- Ora... Se te quiseres matar, mata-te! Mas espera pelo Lusitânia, para ser mais fino...
Que saudades deles os dois.
Que saudades deles os dois.
José Coelho