sexta-feira, 7 de julho de 2023

Enquanto viver

Foto José Coelho

Passo a maior parte dos meus dias sossegado em casa naquela que foi, por decisão do meu pai há já mais de setenta anos, a primeira construção a dar forma à rua que mais tarde haveria de ser batizada com o nome de Fernando Namora.

Foi ele quem arrancou, à força dos seus braços, ajudado apenas pela alavanca de ferro e pela picareta de aço, os canchos enormes que aqui havia e depois moldou a guilho e a martelão cada bloco da pedra que Mestre Caldeira, dos Barretos, pedreiro de fama à época, haveria de utilizar para erguerem as paredes.

Envolto na serenidade e paz do lugar, estar aqui é para mim um duplo aconchego. Pouca gente compreende isso mas o importante é aquilo que eu sinto e não o que os outros pensem. O silêncio que me rodeia é abençoado por uma vida inteira de muitas e boas recordações, qual aguarela de pintor enriquecida pelas cores da sua paleta de tintas.

É tão fácil para mim "ouvir" e "sentir" ainda o bulício da casa de outrora. O riso sempre pronto da minha mãe ou o tom tranquilo da voz grave do meu pai. No inverno à lareira a ouvir o bater da chuva nas vidraças e no telhado, o vento frio a uivar lá fora e nós quentinhos em volta do lume. E no verão, depois da ceia, todos sentados à porta na rua, em amena conversa com a vizinhança até às tantas, naqueles convívios bonitos de quase família também. 

A vida era muito difícil de verdade, mas antigamente as pessoas eram tão mais honestas, tão mais amigas umas das outras, tão mais humildes, humanas e solidárias, na verdadeira acepção dessas palavras que agora se proclamam aos quatro ventos mas quase ninguém conhece ou pratica verdadeiramente.

O tempo voou e tudo mudou. 

Crescemos, voámos também nós deste acolhedor ninho e vieram os nossos filhos que os avós adoravam e aconchegavam a si como nos tinham aconchegado a nós, quiçá até mais do que a nós. Os seus primeiros risos, os seus primeiros passos, o balbuciar das suas primeiras palavras, tudo se repetiu sob o mesmo teto da mesma casinha em que nós seus pais o havíamos já praticado também, apesar de então ser minúscula no tamanho mas tão grande nos afetos.

Passei depois a proprietário por expresso empenho do meu pai. E nela passámos a habitar três ramos da mesma árvore. A matriarca Avó Amélia, os patriarcas António e Florinda, e nós. Tive de ampliar o espaço de modo a ficarmos todos comodamente instalados mas a pequena casinha de quatro divisões ficou intacta dentro da maior e passou a chamar-se Toca dos Coelhos e cresceu imenso para os lados e para cima.

Mas as paredes que me viram nascer ficaram intactas e as pedras que o meu pai moldou à força dos seus braços ficaram onde ele quis que ficassem. São sagradas para mim. Foi entre elas que ele partiu e eu lhe cerrei as pálpebras ainda quentes na madrugada do dia 23 de Janeiro de 1994. Em paz, tranquilamente, no seu pequeno quarto, na cama e na casa que nunca deixaram de ser também suas.

É por essas e por muitas outras razões que a Toca dos Coelhos tem para mim o valor de um santuário. Enquanto viver aqui se manterão religiosamente guardadas as memórias mais ternas dos meus pais e avós, das minhas irmãs, dos meus filhos e – como não hei-de estar a ficar velho – também já das minhas netinhas...


José Coelho