Com data fixa a 16 de julho de cada ano, a sua preparação começava a bulir
logo em fins de maio, princípios de junho. A Comissão de Festas composta por um
punhado de pessoas de todas as forças vivas da terra, CP, Alfândega,
Despachantes Oficiais e seus respetivos colaboradores, comerciantes e
trabalhadores rurais, quase todos transitados dos anos anteriores e acrescida
esporadicamente por um ou outro novo elemento, convocava as reuniões
preparatórias na Sociedade Recreativa para se debater o programa da festa e
distribuir as diversas atividades por grupos de pessoas como o peditório para
festa e para a quermesse por todos os povoados vizinhos, quem iria tratar da
ornamentação das ruas, da montagem do palco, quermesse e bar no recinto da
festa, etc, etc..
Iniciava-se desde logo a feitura de centenas de rifas e de bandeirinhas de papel colorido coladas depois em novelos de cordel com uma massa de farinha e água que depois de secas eram enroladas em novelos nuns grandes pedaços de cartão. Dezenas de postes de madeira de pinho guardados todo o ano no “casão dos Vivas” eram transportados pouco a pouco para as ruas para serem caiados pelas senhoras um a um, a pincel com cal branca, matéria barata e abundante nas caleiras da Escusa. Daí nasceu o “apelido” de “festa do pau caiado” que dava jus a muitas piadas carregadas de brejeirice entre a rapaziada moça do burgo e arredores.
À medida que iam ficando prontos, os paus imaculadamente brancos eram cravados de xis em xis metros nos dois lados das ruas principais da aldeia, previamente ornamentados já com duas bandeirolas de pano, azuis e brancas. Depois de um para o outro lado da rua eram pregadas em zigue-zague as tais centenas de metros de cordel com bandeirinhas coloridas de papel, intercaladas por miríades de lâmpadas elétricas que davam à aldeia um ar solene de traje de gala.
Havia ainda também algumas faixas de pano branco com frases litúrgicas - Bendita És Tu entre as mulheres, ou outras - pelas ruas por onde iria passar a Senhora do Carmo no seu imponente andor todo coberto de flores naturais e iluminado por quatro portentosos candelabros elétricos ligados a uma bateria, carregado em ombros por oito homens de cada vez que se iam revezando por outros tantos. Era uma das maiores festas do concelho, equiparada ao S. Marcos de Santo António das Areias em 25 de Abril e à Senhora da Estrela, Padroeira do Concelho de Marvão, em 8 de Setembro.
As décadas de 50 e 60 foram as duas décadas de ouro da Beirã em termos de população, emprego e atividade comercial. Era uma comunidade muito viva e quase autosuficiente com um mercado semanal à segunda-feira onde se vendia de tudo. Produtos frescos das hortas e pomares, aves vivas e ovos, enchidos e queijos caseiros de altíssima qualidade. De todos os lugares da freguesia vinham hortelãos vender os produtos das suas hortas e frutas, assim como alguns feirantes vinham também vender roupas e calçado nas suas carrinhas.
Além deste mercado semanal existia também o diverso comércio local com cinco ou seis tabernas-mercearias, dois talhos, uma padaria, dois alfaiates, dois barbeiros, um carpinteiro, mestres-de-obras, um restaurante, duas pensões, a Loja Grande que era uma espécie dos atuais minimercados onde se vendia de tudo, duas escolas – uma para os rapazes outra para as raparigas – um cartório do Registo Civil, uma Sociedade Recreativa onde quase todas as semanas havia bailes e cinema na grande sala de espetáculos e na qual também se podia assistir tranquilamente às emissões diárias da RTP.
Havia ainda um Clube Recreativo semiprivado só acessível a sócios com quotas pagas em dia e que eram selecionados/aprovados pela direção do mesmo, após requererem a sua inscrição. Era o “Clube dos ricos” como comummente se comentava entre a malta “menos rica”. Nesse tempo a Beirã era talvez uma das aldeias mais emblemáticas e desenvolvidas do Concelho de Marvão. O intenso tráfego ferroviário de mercadorias e passageiros entre Portugal e Espanha e vice-versa, promoviam todo esse desenvolvimento.
A sua população, em virtude dos inúmeros Serviços que aqui tinham sede – ferroviários, pessoal aduaneiro, guarda-fiscal, Pide/DGS, despachantes oficiais e seus colaboradores – era oriunda um pouco de todos os cantos de Portugal. Havia gente das Beiras, do Minho e Trás-os-Montes, do Douro, do Baixo e Alto Alentejo e do Algarve. Aqui colocados em serviço, aqui se estabeleciam e aqui nasceram muitos dos seus filhos que depois aqui cresceram, frequentaram a escola e catequese em saudável convivência e vizinhança com os Beiranenses de todas as classes sociais dos quais passavam, sem qualquer dificuldade, a fazer parte.
O Dia Maior da Beirã foi e tem sido até hoje, o Dia da sua Padroeira. Calhe o dia 16 de julho em dia de semana ou em fim de semana, desde que me conheço que a Beirã chama a si, neste dia, muitos dos seus filhos, onde quer que se encontram. É inexplicável, especialmente agora que somos por cá já tão poucos a morar e a ir à missa, como no Dia da Padroeira a igreja se enche por completo. Filhos da Senhora que vivem longe e só cá vêm no Seu dia. Ao cair da noite então, a procissão junta ainda mais e mais gente. É um enigma que nunca consegui entender.
Amor de filhos? Fé? Saudades?
Não sei...
José Coelho
(Excerto de um texto que escrevi em julho de 2019)